O que uns olhos não vêem, outros despem

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A Arte vive em toda a parte, mesmo quando não nos apercebemos da sua presença. Muitas vezes passa despercebida e ainda assim toca-nos, inspira-nos e muda-nos. Olhar para uma pintura é abrir uma porta para outro espaço-tempo: onde as cores, formas e gestos falam connosco e, mesmo sem palavras, contam histórias que apenas nós conseguimos ouvir.

As cores carregam peso, intenção e memória. Conduzem o nosso olhar como se nos pegassem pela mão. Há nelas uma profundidade que não requer explicação. Sentimos antes de compreender. No quadro, o castanho do tronco pulsa com vida contida; o verde irrompe, aqui e ali, como um sopro fresco; os azuis que se insinuam no corpo de Ophelia, acrescentam mistério a cada detalhe. A paleta não adorna, narra. E os nossos olhos despem essa narrativa muito antes da mente a conseguir traduzir.


A primeira sensação que se tem quando se olha para o Ophelia é de serenidade absoluta. O corpo flutuante na água parece leve, quase a dançar na superfície, como se estivesse suspenso num sonho tranquilo. A inclinação da cabeça, os olhos fechados e a expressão calma no rosto reforçam essa ideia de paz. Não há tensão visível nos ombros ou nos braços. Tudo parece relaxado, entregue à leveza da água.

Os braços estão estendidos de forma natural, com as mãos repousadas suavemente sobre a água, como se o corpo estivesse em repouso. Nenhum músculo se destaca, nenhum gesto indica esforço ou dor. A postura transmite equilíbrio e harmonia, e a suavidade das linhas do corpo faz com que pareça parte da própria água.

O dourado e os reflexos da água funcionam como uma extensão dessa paz. O brilho suave envolve o corpo e as flores, criando um ambiente quase mágico, uma aura que parece proteger e serenar. Os detalhes ornamentais e o fundo decorativo sugerem um espaço seguro, suspenso no tempo, longe de qualquer ameaça ou distúrbio. A escolha da cor e textura reforça a interpretação de que Ophelia está entregue a um momento de quietude e contemplação.

A forma como o cabelo se espalha suavemente sobre a água enfatiza a sensação de leveza e liberdade, como se estivesse a flutuar sem qualquer resistência. Cada detalhe reforça a ideia de que o quadro capta um instante de harmonia, serenidade e beleza intemporal.

No entanto, a beleza da arte é que nos permite escolher o que conservar no nosso íntimo.


Cada olhar retém na arte aquilo que lhe faz sentido.

Esta obra encontra-se exposta na Tate Britain Collection, em Londres. Tenho orgulho de a ter visto com os meus próprios olhos.

Para mim, sempre foi uma obra baseada em dor e sofrimento. A boca semiaberta, os olhos vazios, o corpo flutuante na água. Tudo me transmite exaustão e abandono, como se Ophelia estivesse presa num sofrimento tão intenso que já nem sequer forças para comunicar tem. Não é entrega tranquila, nem serenidade, mas sim rendição absoluta.

Gestos como o leve toque das mãos sobre a água e a inclinação da cabeça sugerem fragilidade profunda, um peso que o corpo não consegue suportar sozinho. As flores que flutuam ao seu redor (que a maioria interpretará como sinal de harmonia), para mim são testemunhas silenciosas desse sofrimento, pontuando aquilo que são os seus últimos sinais de vida.

O dourado da água, que à partida seria caloroso e acolhedor, revela-se quase uma máscara, um brilho que tenta disfarçar o cru que acontece no submerso. Cada movimento, mesmo mínimo, carrega resignação e impotência. Não há gritos nem gestos exagerados. Apenas um silêncio carregado.

Sinto também que, neste quadro, o tempo está em suspenso, como se cada pétala, cada ondulação da água e cada reflexo dourado, prolongassem infinitamente aquele instante entre vida e morte. Ela já não age, mas ainda existe de forma sensível, percepcionando o mundo à sua volta com uma presença que é quase fantasmagórica. É um limiar onde a vida se dissolve lentamente, e nós, observadores, temos acesso a essa pausa que mais ninguém consegue perceber. O quadro deixa de ser apenas estético ou narrativo e transforma-se numa experiência temporal, uma contemplação do instante absoluto, do que permanece mesmo quando tudo parece cessar.

O contraste entre a minúcia das flores, a textura da água e a abstração do fundo cria uma barreira entre nós e Ophelia, tornando impossível tocar a sua existência de forma direta. Mas é precisamente essa separação que intensifica a consciência do limiar: sentimos que estamos próximos do íntimo da dor e da existência, mas em simultâneo somos relembrados da impossibilidade de nos inserirmos completamente na sua pele.

A pintura torna-se assim um espaço de introspeção profunda, onde cada olhar revela nuances invisíveis à primeira vista, lembrando-nos a delicada fronteira entre presença e ausência, entre sentir e não poder comunicar e entre vida e memória. Ophelia é beleza pungente, convive lado a lado com a fragilidade extrema e o abandono total, num instante congelado por Millais.


Ao contemplar Ophelia, apercebemo-nos que não é apenas sobre o que está pintado na tela, mas sobre tudo aquilo que cada um de nós consegue ver, sentir e imaginar. É a liberdade de encontrar sentido, de explorar camadas invisíveis e de permitir que a nossa própria sensibilidade revele diferentes detalhes.

Curiosamente, Ophelia não vive apenas nesta versão. Ao longo do tempo, vários artistas pintaram também a sua própria “Ophelia”. Cada uma com luz, cor e emoção diferentes. Há Ophelias serenas, sombrias, etéreas e outras profundamente trágicas. Ver estas obras lado a lado é perceber como a mesma figura se transforma conforme o olhar de quem a recria. É também um lembrete de que nenhuma interpretação é fixa e que cada Ophelia revela um fragmento diferente da sua própria história.

Partilho aqui algumas Ophelias que, ao longo do tempo, moldaram esta figura e aprofundaram ainda mais a sua presença no imaginário artístico:

Ophelia, Arthur Hughes (1852) https://l1nq.com/UhRmH
Ophelia, Alexandre Cabanel (1883) https://sl1nk.com/ggvsC
Ophelia, Paul Steck (1895) https://sl1nk.com/BSgBP
Ophelia, Odilon Redon (1903) https://l1nq.com/7oNJ9

Cada uma destas imagens é um eco da mesma personagem literária, mas nenhuma é igual. E é justamente nessa diferença que vive a força da arte: na capacidade infinita de renascer em cada olhar.

O que torna a arte tão poderosa é essa multiplicidade de interpretações. Um mesmo quadro pode ser visto tanto como serenidade absoluta por uns, como dor intensa e instante suspenso por outros. Cada olhar constrói a sua narrativa, cada mente acrescenta camadas de sentido, e nenhuma delas está errada.

A arte é figurativa, simbólica e ao mesmo tempo íntima, transformando-se naquilo que escolhemos guardar dela.

Arte é um portal aberto para mundos que existem entre o visível e o imaginário, entre o que os olhos captam e o que a mente descobre. É aqui, entre forma, vivência, memória e emoção, que a Arte revela a sua essência. Mostra-nos que, muitas vezes, o que uns olhos não vêem, outros despem.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Fonte da imagem de capa: Ophelia, John Millais (1851-52)

Escrito por: Madalena Cardoso

Editado por: Rodrigo Caeiro

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