Greve geral: grave, grandiosa ou grandemente vazia?

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A greve geral aconteceu no dia 11 deste mês de dezembro por todo o país, como previsto. Se tivesse de resumir numa frase, diria que é vanguardista, mas anunciada pelos motivos errados. Foi tal como se esperava a priori. Pelo menos, por cá já estava mínimamente preparado.

Houve quem se manifestasse. Houve quem escolhesse a outra via e decidisse ao invés trabalhar. E houve os que levaram de tabela e que não foram trabalhar pela vontade de outros que assim o decidiram livremente.

No meio de tudo isto, números – a famosa política da tabela excel. Uns para aqui, outros para acolá e para trás. Há quem fale em adesão de 3 milhões de trabalhadores, nomeadamente, na CNN durante a tarde. Já o Governo, esse, coloca a fasquia na adesão de perto de 10%. Quem está certo? Nunca saberemos.

Admite-se, deste modo, que alguns devotos às soluções de produtividade da Microsoft, especialmente no que respeita a registo e análise de dados, estejam a arrancar os cabelos. Não conseguem ter respostas absolutas nas sedes do Governo e outras instituições. Mas que raio de país este em que nem se consegue dizer se uma pessoa fez ou não fez greve? Isto assim está muito ultrapassado. No século XXI tudo tem de ser medido, ter um código no SPSS ou Excel.

Mas voltando à greve em si – estes acontecimentos têm um problema gravoso – têm pessoas. Mais, as pessoas – vende-se essa ideia – têm legitimidade para se “expressarem” no pleno da sua “individualidade”. Muitas vezes a gente dispensava ver. Estavam melhor a protestar de uma outra forma ou a realmente elaborar e discutir ideias inovadoras para os problemas das pessoas. Onde vai o tempo em que se insurgiam os grandes poetas deste país sobre os problemas do mundo como acontecia em ditadura, por exemplo com Ary dos Santos? Agora o léxico dos nossos manifestantes anda muito limitado. Já para não falar das atitudes – garrafas e fogos, por mim, só se for para fazer uma churrascada, e de preferência longe da Assembleia da República. Consigo imaginar sítios melhores para o efeito.

Assim, acabamos por arranjar desculpas para políticos descrediblizarem a greve através das generalizações dos atos de alguns manifestantes muito… mesmo demasiado… barulhentos.

Entre referências a caprinos, partes de barcos e profissões típicas das horas tardias, pouco se ouviu falar sobre o que levava, concretamente, as pessoas às ruas. É pena. Considero que havia motivos para tal e boas oportunidades foram desperdiçadas.

Nomeadamente, está em causa uma proposta que vem possibilitar a eternização de contratos precários, coloca limitações, em alguns pontos, bastante questionáveis à lei da greve, é nociva para mulheres que pretendam efetuar luto gestacional, permite abrir caminho mais horas de trabalho sem que daí advenham necessariamente (e em abstrato) para o trabalhador em termos financeiros, isto para não falar na facilitação e arbitrariedade nos despedimentos (assim normalizada em termos legais), entre outras medidas.

Antes que me acusem de injustiça e de não me ter informado, há coisas que tenho de reconhecer que são muito bem conseguidas. Destas, destaco as alterações à licença parental que podem, efetivamente, ser mais benéficas para os progenitores, o regresso dos três dias de férias relativos à assiduidade (que surge já numa nova proposta entregue à UGT), ou até mesmo a agradável surpresa em relação à quota de contratação de pessoas com deficiência que passa a abranger os trabalhadores com um grau de incapacidade igual ou superior a 33% – uma medida que, infelizmente, ainda é necessária para a integração de pessoas em situação de maior vulnerabilidade no mercado de trabalho.

Dito isto, não se pode dizer que o Governo se escusou totalmente das suas resposabilidades a nível social e se auscultarmos apenas as narrativas que deambulam pela agenda pública ou mediática, assim nos parece o caso.

Porque será que elas circulam, se assim é? Bom, porque, efetivamente, não sendo um abandono total das suas resposabilidades sociais, acaba por ser um projeto frouxo, muito sonante, mas tão vazio em reais soluções que chega a ser, diria, choninhas.

O Governo apresentou este projeto como sendo o Dumbledore das soluções para o mercado de trabalho português e abanou vigorosamente as bandeiras da “flexibilização” e da “competitividade” da economia, o que, supõem-se, acredita que vá resultar em melhores salários. Eu cá não vou com esta coisa da flexibilidade. Desde muito novo que os meus tendões estão uma lástima. Ginástica não é comigo. Esticar seja o que for é cada vez mais difícil. Deixo isso para os grandes e tão talentosos atletas do nosso país. Em relação à competitividade, só se for saudável. Se for como a que verifico junto de muitos dos meus prestimosos pares académicos, talvez um bocadinho de conformismo até possa ser melhor.

Na dúvida, talvez mecanismos (reais e honestos) de cooperação possam ajudar mais. Mas isso dá uma trabalheira. Implica meter pessoas a entenderem-se e todos sabemos que missões comuns e bem intencionadas são impossíveis, como está amplamente provado por… bem, isso também não interessa e é uma massada para as pessoas – os burocratas da academia não precisam de se intrometer em tudo, especialmente quando implica a governação da vida das pessoas. Desde que haja coisas para a malta se entreter, o resto é fado.

A greve surge porque, sucessivamente, os Governos da República Portuguesa têm-se escusado de enfrentar os reais problemas que colocam em xeque o futuro da economia portuguesa. Não tanto do pacote laboral X ou medida Y, e isto é a minha análise pessoal, para além do discurso dito, mas também do que suponho que sejam as motivações latentes. Um Governo que não apostar fortemente na força de trabalho atual e futura do país não tem noção do mundo complexo em que vive hoje em dia.

Isto de nos basearmos na “fezada” depois da distinção do The Economist que declarou a economia portuguesa como a economia do ano de 2025, não dá. Há que olhar para além da fotografia.

A valorização dos Direitos dos Trabalhadores não é um tema extemporâneo. Pelo contrário, nunca desde os primórdios da Revolução Industrial este foi um tema tão relevante no globo. Fico contente pelos portugueses, pelo menos nisto, estarem a tomar uma posição que parece vanguardista (embora não estejam diretamente a abanar as suas bandeiras nesse sentido).

Com a proliferação de recursos relacionados à Inteligência Artificial (nomeadamente, generativa) o papel dos trabalhadores é posto em causa, podendo, muitas empresas, optar por dirigir financiamento a modelos desta índole (dedicados a certas atividades profissionais ou não) e “poupar” em força de trabalho humana. Tanto quanto me informei, pouco ou nada neste Projeto aborda estes desafios da contemporaneidade.

É especialmente gravoso dada a matriz social-democrata e ligada à democracia cristã que caracteriza os partidos representados no Governo. Ao invés de adotarem uma posição vanguardista nestas matérias, de dar um sinal claro aos trabalhadores da sua valorização, num plano humanista, decidem, com certos pontos deste projeto, tratar as pessoas que trabalham como um “problema” – algo que tem de ser controlado na sua ação e espetro da sua revolta e recursos técnicos, legais, humanos, financeiros ou sociais a essa ação ou atitude associados.

Não há valorização substancial dos trabalhadores, das suas competências não só técnicas, como também sociais, humanas e sobretudo críticas, mas não há também um sinal político no sentido da variação da valorização das novas inovações na área da Inteligência Artificial Generativa e Machine Learning. Isto coloca qualquer uma destas “alternativas”, de um ponto de vista que eventualmente será enraizado culturalmente, como dignas de ser escolhidas, criando uma distopia e abrindo a porta para narrativas ligadas à pós-humanidade – seja isso lá o que for. Se humanos premium ou extinção da espécie.

Mais, alguém acha que por via deste projeto e restante atuação do Governo (por exemplo, a alinhar em linhas de pensamento populistas sobre a imigração que é determinante para a sustentabilidade financeira de Portugal) vai conseguir aumentar o salário mínimo para 1600 euros e o médio para 3000 euros mensais? Em que planeta? Sobretudo, em que ano? Espero estar redondamente enganado, mas, a acontecer, já devo ter mais alguns cabelos e, quem sabe, barbas brancas.

Esse anúncio é, a meu ver, o ponto mais desrespeituoso para os trabalhadores. Uma coisa é não querer agir perante evidências e atirar problemas para debaixo do tapete (ou repetir vezes sem conta que eles não existem realmente), outra coisa é fazer as pessoas de estúpidas. Isso é mesmo a última gota.

O pacote laboral, tendo devaneios de inspiração, é desiquilibrado. Perde o seu potencial no meio de populismos e tentativas de agradar a gregos e a troianos destas “direitas” que proliferam na Assembleia da República, desde os mais românticos neo-liberais e as suas ideias de um mercado justo e pujante – uma teocracia da moeda – até aos mais nacionalistas, populistas e, de modo geral, ligados à extrema-direita, por regra, com argumentos de meia-tigela sobre invasões, terras destes e daqueles países que duvido que consigam apontar num mapa.

Soluções para os jovens? Para os salários baixos? Para realmente potenciar o empreendedorismo? Para as progressões de carreira? Para a conciliação entre vida pessoal e privada? Isso é coisa que o vento sopra um dia destes com mais força e resolve. Desde que haja este pacote laboral, claro! Resta saber porquê.

Assim, a greve justifica-se, não pelo pacote laboral em si, mas pelo que ele representa – uma desinspiração coletiva da classe política em encontrar soluções para os problemas das pessoas num contexto socioeconómico global complexo e com muitas dicotomias que têm de ser ultimamente resolvidas, se não por ação humana e política, então por seleção natural – neste último cenário, não sei até que ponto o resultado nos será favorável. Houve conversações em sede de concertação social. Isso é positivo. Mas governos e sindicatos têm de fazer muito, muito mais. Isto não é uma questão de “nós contra eles”, mas sim um manifesto sobre o rumo que a dignificação da pessoa humana deve tomar nos próximos anos. Acusem-me de fatalismo se quiserem, contudo, mais vale prevenir aquilo que pode correr mal do que chorar sobre isso anos mais tarde. No final de contas, que coisa que se pode complicar é que não acaba efetivamente por se complicar?

Spoilers de Harry Potter neste parágrafo: Se este projeto é o Dumbledore do Governo para lutar contra os baixos salários, a fuga de cérebros do país, os problemas dos jovens, a pobreza, etc., então não me parece que seja o Dumbledore da Ordem da Fénix que defrontou o Voldemorte de forma firme e poderosa. É mais o do Príncipe de Meio Sangue. Em que, no fim do filme, aparece já desgastado numa busca incessante e, em grande medida, às cegas, pelos Talismãs da Morte e em que acaba mesmo por falecer. No filme, a morte é combinada com Snape. Cá estaremos para ver se o Dumbledore português não terá uma história parecida agora que as pessoas estão a morder os calcanhares ao Luís para trabalhar.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Fonte da imagem da capa: Olhares de Lisboa

Escrito por: José Pereira

Editado por: Leonor Oliveira

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