A falsa ideia de liberdade na democracia moderna

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Nascemos numa sociedade em que nos é oferecida a ideia de liberdade como o seu pilar fundamental. É-nos prometido o livre-arbítrio de decidirmos quem nos governa, o que consumimos, onde vivemos e o que fazemos na nossa vida. Plantam em nós a ideia de que o pior que nos pode acontecer é vivermos fora da democracia, mas será esta liberdade real? Será que a democracia moderna é o caminho que devemos seguir se queremos ser livres? Basta olharmos mais de perto para as opções que nos são dadas para perceber que esta liberdade não passa de uma ilusão cuidadosamente construída. Corresponde à limitação de escolhas, imposta por um sistema que serve apenas os interesses de uma elite, enquanto o resto do mundo permanece prisioneiro de opções insuficientes e restritas. 

O sistema político democrático moderno é o primeiro exemplo evidente desta enganadora sensação de liberdade. Cada vez mais a democracia depende de grandes financiadores e lobbyistas e, se aparentemente parece que temos o poder nas nossas mãos e que elegemos os lideres que queremos, a verdade é que apenas aqueles com recursos económicos e financeiros suficientes conseguem atender a uma campanha política competitiva. O exemplo claro dos Estados Unidos, onde a OpenSecrets revela que as campanhas eleitorais nas presidenciais de 2020 somaram mais de $14,4 mil milhões, em que a maior parte desse dinheiro provinha de doações de indivíduos com grandes fortunas e grandes corporações, evidencia que o poder de decidir, dentro da nossa sociedade, está diretamente vinculado ao dinheiro: “(…) o dinheiro, quando se torna o principal motor do processo político, transforma a relação entre cidadãos e seus representantes, criando um sistema onde as vozes dos ricos e poderosos são ouvidas acima das de cidadãos comuns.” (L. Lessig. Republic, Lost, Capítulo 1). Aqueles que se destacam serão sempre os candidatos com acesso a financiamento, seja de indivíduos com grandes posses ou de grandes empresas, o que inevitavelmente concede uma grande abertura para manipulação da atuação dos mesmos (no caso dos EUA, e paralelamente ao facto das suas suas eleições serem suportadas pelo financiamento da elite económica, o estudo de economistas, como Gilens e Page (2014), mostraram que as políticas públicas refletem muito mais os desejos dos mais ricos do que os da população em geral). Para os restantes candidatos, o caminho para chegar a um cargo político de relevância é muito mais difícil. O verdadeiro resultado disto é a falsa conceção de que o voto da população é livre e tem um peso significativo no sistema. A verdade é que o sufrágio está limitado a um conjunto muito limitado de opções, que por sua vez tendem em visar os interesses daqueles que já controlam o sistema, e não da população em geral.

No seu livro O Capital no Século XXI, Thomas Piketty reflete sobre como o crescimento da desigualdade de riqueza nas últimas décadas é significativo. Piketty argumenta que a concentração da riqueza está cada vez mais concentrada nas mãos dos 1% mais ricos (que detém cerca de 45,8% de toda a riqueza, de acordo com os dados da Credit Suisse), em detrimento das classes médias e baixas. Esse grupo detém uma parte substancial dos ativos financeiros globais, o que lhes concede uma posição dominante e privilegiada na sociedade e na política. 

A comunicação social encontra-se ainda, na generalidade, ao serviço dos interesses políticos e económicos desse 1%. Num relatório dos Reporters Without Borders (RSF), em 2021, salienta-se que a propriedade da mídia global é altamente concentrada. Voltando a pegar no exemplo dos Estados Unidos, cerca de 90% dos meios de comunicação estão controlados por apenas cinco grandes corporações: Comcast, Disney, AT&T, Paramount Global e News Corp. Não é por acaso que isto acontece: quando devia ser imparcial, a imprensa vende-se ás grandes corporações, concedendo-lhes o poder de controlar as informações que chegam ao público, moldando a sua opinião conforme lhes convém: “as principais empresas de mídia são grandes corporações que buscam lucro, controladas e possuídas por pessoas ricas” (Herman, Chomsky, Said. Manufacturing Consent, Capítulo 1).  Também o investimento nas campanhas políticas nas redes sociais, onde a desinformação circula sem limites, cresce exponencialmente. Notícias descontextualizadas ou destorcidas, informação imprecisa e até nítidas mentiras correm desenfreadas, influenciado a forma como as pessoas entendem a realidade. O exemplo da reportagem da Reuters Institute, que prova que grandes corporações e elites políticas frequentemente usam redes sociais para moldar o discurso público a seu favor (nomeadamente campanhas eleitorais recentes, como as do Brexit ou as eleições presidenciais dos EUA em 2016, em que houve um aumento significativo no uso de bots e perfis falsos para espalhar desinformação nas redes sociais), é uma evidencia clara desta estratégia de manipulação. Quando, no caso de um país desenvolvido como Portugal, quase 300 mil pessoas continuam a ser analfabetas (informação  retirada dos censos feitos pelo INE em 2021), e com o facto de sabermos que a taxa de analfabetismo aumenta substancialmente em países em desenvolvimento,  esta situação constitui uma preocupação ainda maior, pois confirma-se que a grande maioria da população não possui a  literacia política, económica e social indispensável para questionar as ideias que lhe são apresentadas . É  influenciada a aceitar as narrativas dominantes sem refletir sobre elas nem explorar fontes alternativas de informação, o que cinge consideravelmente a sua capacidade de tomar decisões conscientes.

Por sua vez, a educação, cuja responsabilidade é ser um instrumento de libertação, torna-se outra peça deste jogo doentio, servindo como ferramenta de conformidade: em vez de fomentar o pensamento crítico e capacitar os cidadãos para questionar as estruturas de poder, o sistema educacional está formatado para gerar trabalhadores obedientes e submissos, e não pensadores com opiniões. A Foundation for Individual Rights in Education (FIRE) realizou um estudo em 2019 que expôs a sensação de 73% dos estudantes de ensino superior norte-americanos de não poderem expressar as suas opiniões livremente em sala de aula, particularmente quanto a respeito de assuntos políticos ou sociais controversos. O ambiente de conformidade intelectual torna-se claro perante estes números. As instituições de ensino priorizam o lucro em detrimento da educação crítica e “essa transformação tem efeitos devastadores sobre o papel da educação como um espaço de liberdade e crítica, transformando-a em um instrumento de controle social” (Giroux. Neoliberalism’s War on Higher Education, Capítulo 1). A pouca ou nenhuma literacia política e histórica da população (um relatório da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) de 2020 revelou que, em Portugal, apenas 33,2% dos jovens entre 18 e 24 anos conseguem identificar de forma correta conceitos fundamentais relacionados à política e à democracia) auxilia o conformismo que o sistema impõe: ao manter a desinformação, o sistema assegura que a generalidade da população não é suficientemente conhecedora para desafiar o status quo.  Os detentores de poder não têm interesse algum em providenciar uma instrução que estimule a mudança, até porque, quando mais passiva for a população, mais fácil se torna manter a sua posição de privilégio. 

Surge então a pergunta: quem de facto detém o poder numa democracia, o poder político ou o poder económico? Na sua obra Who Governs? Democracy and Power in an American City, o teórico da democracia norte-americano Robert Dahl argumenta que “em teoria, a democracia deve ser governada pelo povo; na prática, no entanto, as elites acabam controlando as principais decisões políticas. Aqueles com recursos e influência exercem um poder desproporcional, moldando políticas que favorecem seus interesses.” (Capítulo 2). Por outras palavras, embora o sistema democrático seja vendido como o regime do povo, é claro que quem lidera por detrás das câmeras são as multinacionais, grandes corporações, bancos e indivíduos com grandes fortunas. Este núcleo detém o poder de influenciar as leis e decisões governamentais, de uma forma quase impossível de um cidadão comum combater. Um exemplo claro da influência dos grandes grupos económicos na criação de leis é o lobbying: estima-se que, em 2020, US$ 3,53 mil milhões foram gastos em lobby nos Estados Unidos. Grandes corporações como a Amazon, a Google e a ExxonMobil são algumas das maiores investidoras nesta atividade, o que se reflete em acesso privilegiado a legisladores, permitindo-lhes moldarem políticas a seu favor. O interesse económico prevalece sempre sobre as necessidades sociais, tornando a verdadeira liberdade de escolha inalcançável pela maioria. Enquanto a generalidade das pessoas luta para sobreviver ao sistema em que vivemos, tentando assegurar bens essenciais e a mínima dignidade de existência, sem oportunidade de decidir o rumo da própria vida (num estudo feito em 2020, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) destacou que, globalmente, mais de 700 milhões de pessoas vivem em condições de pobreza extrema ou moderada, mesmo que empregadas), alguns poucos continuam a enriquecer e a providenciar medidas que asseguram este modelo social. 

Perante esta realidade, torna-se claro que que as nossas escolhas são, todas elas, condicionadas e que a nossa liberdade não passa de uma fachada. A promessa de uma sociedade onde o livre-arbítrio é o pilar absoluto é, na realidade, uma narrativa que esconde as profundas desigualdades e limitações impostas pelo sistema. Para sequer podermos começar a equacionar uma sociedade onde a liberdade total e plena exista, será necessário reestruturar o sistema integralmente, assegurando o fim do desequilíbrio económico e social que separa tão drasticamente a população. Será preciso assegurar o acesso de todos os indivíduos ás mesmas oportunidades, sem a influência esmagadora do dinheiro. Também a comunicação e a educação terão de sofrer uma reforma drástica, democratizando o acesso à informação e garantindo a imparcialidade e objetividade da mesma, bem como impulsionando o espírito crítico e apostando na educação económica, política, social e histórica dos cidadãos. 

Só através da igualdade será possível atingir uma liberdade que não seja apenas uma idealização, mas sim um direito genuíno a que todos os indivíduos tenham acesso. Até o sistema se transformar, continuaremos  presos num regime onde a liberdade não é mais que uma promessa vazia, restrita aos poucos privilegiados. 

Este artigo é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Inês Esteves

Editado por: Pedro Cruz

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