Crónica: um pé na aldeia, outro na capital

Escrito por

Sou estudante deslocada e sou da “santa terrinha” (com orgulho!). O choque de realidade entre o meio pequeno e a cidade grande é muito forte: muitas pessoas, muitos sítios, muita coisa a acontecer, muito tudo! Esta crónica serve para apresentar aos citadinos como é ser da santa terrinha.

Uma nota antes de começar: gosto muito da realidade da cidade e da realidade da vila/aldeia. Para mim, os dois mundos têm muito para dar, há apenas que saber apreciá-los. É perfeitamente normal que quem venha de um meio pequeno não consiga adaptar-se bem à cidade e vice-versa! Este artigo pretende apenas mostrar algumas curiosidades aos leitores citadinos do desacordo sobre a santa terrinha (sob o meu ponto de vista – alguém que tem um pé na aldeia e outro na capital).

Horários dos autocarros

Meu querido leitor lisboeta, já alguma vez pensaste na possibilidade de não haver autocarros aos fins de semana? Pois é. Nas aldeias, se quiseres ir à grande cidade divertir-te no sábado, tens de pedir boleia.

E nos dias da semana não há autocarros de 15 em 15 minutos a circular… De hora a hora já é muito bom. Para não falar que, a partir das 19 horas, já não tens como regressar a casa porque deixam de haver autocarros. Imagina as pessoas do pós-laboral…

Resumindo: nunca percas um autocarro na terrinha.

E tornas-te amigo dos motoristas num instante.

Sair à rua e encontrar 47 pessoas conhecidas

Se fores antissocial, sair à rua é sempre um risco: podes encontrar, no mínimo, uma pessoa que conheças (nem que seja de vista). As idas ao supermercado tornam-se autênticos meet and greets na secção das frutas (ou no talho). E é nos dias em que não queres mesmo encontrar ninguém que encontras mais pessoas. 

Caso fosses um dos alunos mal comportados da tua turma, a ida ao supermercado constituía um momento de puro terror: a probabilidade da tua mãe encontrar lá a tua diretora de turma aumentava exponencialmente. 

Às vezes nem precisas de ir ao supermercado para encontrares conhecidos. Basta apenas pôr um pé fora de casa e vês que está a haver uma reunião de condomínio na tua rua com as vizinhas cuscas. O que nos leva ao próximo ponto.


Câmaras de vigilância, mais conhecidas como “vizinhas fofoqueiras”

Ai ai, as nossas queridas vizinhas fofoqueiras… É um problema a nível nacional. Contudo, se fores de um meio pequeno, o problema agrava-se: sais à rua e vês umas quantas senhoras à janela. O passatempo desta espécie de ser humano é ficar ali o dia todo para depois reportar tudo à fofoqueira do lado. Normalmente elas falam mal umas das outras nas costas.

O grande problema das senhoras fofoqueiras é que elas normalmente também fazem um report à tua mãe… Se tu fizeres asneira, a tua mãe descobre ainda antes sequer de chegares a casa. Porquê? Porque uma das vizinhas fofoqueiras viu-te e foi logo contar. E nada de esconder relacionamentos: as câmaras de vigilância descobrem logo e, se for preciso, ainda dizem o dia e a hora em que passaste na esquina de mão dada com outra pessoa.

“Filho do Zé Mário”

O teu nome completo na aldeia é, por exemplo, “Xavier Fonseca, filho do Ti’ Zé Fonseca, o Taxista”. Forma curta: filho do Zé Taxista. Não sei porque é que isto acontece. A tua identidade resume-se ao grau de parentesco da pessoa da tua família mais conhecida na terrinha. És o “neto da”, “filha do”, “sobrinha de”.

O café da aldeia

O grande café da aldeia. O ponto de encontro da população onde se faz de tudo um pouco: queixar de dores nos joelhos, jogar nas raspadinhas, beber umas cervejinhas antes do meio dia, fazer compras na mercearia que fica nas traseiras do café, ver os jogos do Benfica, fofocar muito. 

Lá descobres os assuntos que estão nas trends da aldeia. Normalmente as fontes de informação são as ditas cujas das vizinhas fofoqueiras. Se quiseres saber quem é o mais recente membro da comunidade, quem casou, quem morreu e de que doença é que foi, basta ires ao café da aldeia. Nem o padre da paróquia escapa ao escrutínio da malta do café. 

Se fores novo na aldeia, ou se só estiveres de passagem, com certeza vais ser um dos trending topics no café. As mentes mais criativas (normalmente incentivadas por um fino ou outro), vão inventar algumas teorias sobre ti: “deve ser o filho emigrado da São”, “acho que ele nem sequer fala português” ou “será que é o novo namorado da Maria Emília?”. Na verdade, só és amigo do filho do café e foste à aldeia visitá-lo.

Festas da terrinha

O evento do ano! Bandeiras coloridas, colunas de som com qualidade duvidosa, bifanas, caldos verdes, sandes de pernil e leitão, finos com fartura e muito bailarico.

As velhinhas esquecem-se das suas artroses e dançam até cair, os homens instalam-se no bar, as crianças brincam, as fofoqueiras andam à caça de assunto e todos cantam música pimba com a sua alma! 

A parte irónica é que muitas destas festas são em nome de algum santo — Festas da Nossa Senhora do Rosário, dias 15, 16, 17 de junho, entrada livre. Se aquelas festas têm alguma coisa de católico? Só a missa da manhã ao domingo.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Fonte da imagem da capa: fonte própria

Escrito por: Íngride Pais

Editado por: Rodrigo Caeiro

Deixe um comentário