Há sempre um momento na vida em que tudo parece estar a correr bem, demasiado bem. Os dias seguem alinhados como livros numa estante. Previsíveis, confortáveis e arrumados. Depois, sem aviso, algo muda. Um telefonema inesperado. Uma mensagem curta demais. Uma porta que se fecha com um estrondo que nunca antecipámos. Foi precisamente este segundo antes do caos que o TikTok resolveu transformar em tendência: o famoso White Rabbit.
Num feed já saturado de coreografias repetidas e receitas de três ingredientes, surge este coelho branco, inquieto, a olhar para um relógio que insiste em avançar. De repente, milhares de jovens mostram o seu “antes” (sorrisos, tardes no café, viagens, abraços) e sobrepõem-lhe a legenda: “horas antes do coelho branco me apanhar”.
É quase poético: o que vemos é luz, mas o texto promete uma futura sombra. Já nós, espectadores, assistimos com a mesma curiosidade com que se olha para uma fotografia encontrada numa carteira perdida: o que terá acontecido depois?
A segunda metade do vídeo entrega a resposta. O coelho branco chegou. Chega sempre. Umas vezes, na forma de uma separação que ninguém viu vir. Outras, numa perda familiar, numa mudança forçada, num diagnóstico, numa amizade que implodiu ou num emprego que escorregou. A trend cristaliza a súbita consciência de que a vida, por mais estável que pareça, tem sempre uma peça solta a rodar vertiginosamente no interior.
No entanto, o fenómeno é mais profundo do que parece. Não estamos apenas a ver histórias pessoais embaladas por músicas melancólicas. Estamos a testemunhar uma geração a tentar narrar o inexplicável, a dar forma digital ao que antes era silêncio.
A “White Rabbit” não é uma trend: é um gesto coletivo de vulnerabilidade. É o momento em que alguém diz, sem dizer, “também me aconteceu”. Nesse momento, milhares respondem com um like que, paradoxalmente, vale mais como abraço do que como aprovação.
Ao mesmo tempo, há algo inquietante nesta estética da queda. Transformar dor em conteúdo é um risco cada vez mais banalizado nas redes sociais. Há quem veja na trend uma coreografia perigosa, uma romantização da tragédia que converte o sofrimento num objeto de consumo rápido.
Ainda assim, talvez a força do White Rabbit esteja justamente nesse desconforto: obriga-nos a encarar a fragilidade que tantas vezes escondemos. Mostra-nos que, por detrás dos filtros, das notas altas, dos currículos ambiciosos e das fotografias ensolaradas, existe sempre um relógio invisível a marcar o tempo das viragens. Um relógio que o coelho carrega como aviso e metáfora.
É por isso que a trend funcionou tanto entre os jovens, especialmente entre estudantes universitários, que vivem numa corda bamba permanente entre o futuro que idealizam e o presente que tentam equilibrar.
A incerteza é talvez a emoção mais democrática da nossa geração. O White Rabbit, com o seu ar apressado e ligeiramente perturbado, tornou-se a mascote involuntária dessa ansiedade.
Todos temos uma história que começa com “na véspera, estava tudo bem”. O TikTok apenas encontrou uma forma de dizer isso em quinze segundos e de nos lembrar que, apesar de tudo, não estamos sozinhos quando o relógio acelera.
Talvez seja essa a verdadeira moral desta fábula digital: o coelho aparece, sim, mas também passa. O tempo continua e nós continuamos com ele.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Fonte da imagem da capa: Adobe Stock
Escrito por: Matilde Lima
Editado por: Rodrigo Caeiro


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