No dia 25 de Novembro, a Fundação Gulbenkian abriu as portas para o “Complexo B”, um diálogo artístico entre a cantora brasileira, Adriana Calcanhoto, o compositor, pianista e ensaísta, José Miguel Wisnik (curador geral da exposição “Complexo Brasil”) e o violinista brasileiro João Camarero. Um trio que, desde o início, prometia contrariar o norte e sul do erudito e popular.
O evento, tal como a exposição que o acolhe, serviu de reflexão sobre a complexidade de se consumir uma cultura, em oposição a conviver com ela num diálogo genuíno e constante. Se assimilar e integrar são ambos verbos de ação, o concerto revelou como divergem no essencial: um esgota-se na aquisição, o outro próspera com cuidada & cuidante troca. Embora o paradoxo de se falar sobre cultura popular em um espaço reservado, ócio que é negócio, o evento propôs a materialização de um diálogo aberto – um intercâmbio de música, poesia e significações – que mostrou o quanto temos a (re)aprender quando olhamos com o outro, e não sobre o outro. É complexa a cultura do plural, mas é irrevogavelmente revigorante.
O início do concerto foi marcado pelo prelúdio op. 28 nº4 de Chopin, que sofisticamente se transformou em “Insensatez“, o clássico de Tom Jobim e Vinicius, inspirado, precisamente, na progressão harmônica do prelúdio. Na canção os poetas- cantantes divagam com melancolia sobre as (in)consequências da impulsividade no amor. Foi então que Wisnik fez a sua primeira intervenção, numa espécie de cativante aula inaugural, abrindo o diálogo sobre como a música popular pode, no ritmo da bossa nova (mas não só), penetrar e ressignificar a erudita.
A representação de “A Terceira Margem do Rio“, de Caetano Veloso e Milton Nascimento, combinou-se com a “Canção de Siruiz“, de Antônio Candido, costurando ambas com as bordadas palavras fundantes da obra de Guimarães Rosa. Foi uma travessia por histórias, que na rosa da palavra ali cantada, fizeram desabrochar o coração. Ecoaram narrativas condensadas, ora de conto, ora de livro, que deram casa e asa à palavra – homenagem que pegou emprestado à própria fonte a sua matéria-prima.
Adriana Calcanhotto usou a singularidade do seu timbre para navegar pelo poema de Antonio Cícero, devaneando com nadas, sobre erros e eus. Wisnik, por sua vez, robusteceu o diálogo, com o poema barroco decassílabo de Gregório de Matos, onde as palavras ecoam e mudam de sentido, conjugando-o aos versos literais de rua do poeta repentista Zé Bernardino. Logo nos entoados versos seguidos, as palavras deste mesmo nordestino, fazem a reflexão que parece ser a mais profunda da noite. Ele canta que, ao ter estudo, percebe ser “aquele que é considerado nada [o] fazedor de tudo“. Esta “jornada de nada mortal loucura” ensinou, no (des)conforto momentâneo daquela sala, sobre a grandeza destas fusões. A poesia e a música são (re)significadores de palavras, propulsores de encontros e mediadores de complexos léxicos misturados. Pois as palavras, quando cuidadas, são capazes de bradar histórias de formosura.
Ouvidos num misto de orgulho e ternura, os versos d’Os Lusíadas deram lugar à poesia de Antonio Cícero. Aqui, Wisnik partilhou com a plateia pensamentos densos e labirínticos – sombras de tsunamis em mausoléus – sobre a parceria que originou a composição. Coube a Adriana apresentar-nos a poetas portugueses por ela musicados, no rito e rico poder de troca. “De um para outro” passou dos versos de Márcio de Sá-Carneiro para a poesia de Fiama Brandão, culminando nos atemporais e saudosos versos de Adília Lopes, que com sagacidade, travavam um diálogo imaginário com Clarice Lispector. Foi então que a cantora partilhou uma história íntima da sua infância: um livro emprestado pela tia, professora de português, que a agonizou na infância. Tal como Adília, ela não era capaz de perdoar a tal mulher da Clarice que matou os peixes, ainda que o motivo parecesse justo: ter ficado a escrever um livro.
Adriana trouxe depois, de forma exuberante, o exílio de Gonçalves Dias – escrito, em exílio, no Jardim Botânico de Coimbra – para evocar a saudade das palmeiras, dos amores, da terra “onde canta o sabiá“. E enlaçou-o com a sua própria composição, onde corre, divaga e versa, que para Coimbra não existe rima, e que é preciso correr o mundo, mas voltar para o rio raso de lá. “Enquanto dura esta hora“, seguiu-se um momento de serena cumplicidade em palco, com a admiração partilhada pelo divino Pessoa. Cantaram poesias presentes no seu destino sem fogueira de São João, invocando as sombras dos heterónimos Ricardo Reis e Alberto Caeiro.
O último bloco fez toda a plateia cantar a parceira de Toquinho com Vinicius de Moraes – uma fase em que este último experimentava canções mais desencarnadas, menos idealizadas e mais entregues às ironias da vida, ao que era assobio genuíno popular. Era uma recalibragem do destino da bossa nova, distanciando-a de um certo lirismo para a aproximar do povo, ao enaltecer as boas trivialidades da vida. Logo após Camarero brilhar dedilhando um solo de guitarra – instrumento onipresente na MPB –, trouxe-se a reflexão pacificadora de Arnaldo Antunes. Semeiam cantando que o “arejar [de] sentidos de canção são mais eficientes que balas de canhão”. Porque é da escuta do coração de toda a população, que não mata peixes por não saberem falar, que se constrói sentido de nação.
O regresso ao palco, após uma sala preenchida por reflexão e aplausos, trouxe a lição do “Parangolé-Pamplona“. Pela voz e performance de Adriana Calcanhoto, envolvida com um manto verde e amarelo que dançava, explicou-se a importância destes estandartes nas festas populares brasileiras. Os mantos (parangolés), criação do artista Hélio Oiticica, existem a fim de permitir que os quadros habitassem e dançassem pelas ruas, existissem nelas. O vestir da arte democratizava-a. Seguiram-se os versos de Wisnik sobre uma “terra estrangeira“, onde, ao usar palavras somo saudade e fado, nos lembra que Portugal pode ser do tamanho do mundo, mas precisa ser mais do que uma nostalgia de além-mar. Terminaram como começaram, mas agora com os “muitos beijinhos” do dueto que eternizou a saudade.
Ainda como programação complementar da exposição complexo brasil, Adriana Calcanhotto voltou à Fundação Calouste Gulbenkian no dia 29 de Novembro, trazendo um acervo de canções para refletir sobre a concretude da arquitetura vanguardista de Brasília e as relações e tensões políticas entre Brasil e Portugal.
Nota: A autora escreve em português do Brasil.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Fonte da imagem de capa: Fundação Calouste Gulbenkian
Escrito por: Kamila Borges
Editado por: Margarida Simões


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