Cartografia do Rap Português

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O Rap português ergue-se como uma das expressões mais sinceras e pulsantes da cultura contemporânea em Portugal, nascido da urgência de dar voz a quem durante muito tempo foi esquecido. Surgido entre o final dos anos 80 e o início dos anos 90, o movimento encontrou nas ruas o seu primeiro palco.

Rap não se traduz na “agressividade e violência” das palavras, nem na consistência das suas temáticas (crime, drogas, assuntos explícitos,…). O rap nasceu como um espelho da sociedade e, como tal, reflete tanto a dureza como a beleza do mundo que o rodeia. Quando lhe está explícita violência, o rap não a glorifica necessariamente. Muitas vezes denuncia-a, expondo as suas causas e consequências e transformando a dor numa narrativa e o silêncio em resistência. É uma forma de arte que não silencia a verdade, mesmo quando custa ouvi-la.

Referências a drogas, crime ou sexo surgem frequentemente como parte de um retrato social. Não como incentivo, mas sim como um testemunho. São formas de mostrar vivências à margem, histórias que raramente encontram espaço noutros meios de expressão.


O Eco do Eu

Eu sou daqueles que quanto ao amor cético
Nunca dou valor ao que sentimos,
Se der algum dia são cêntimos...
(In Love, Wet Bed Gang)
Mas procuro faíscas no escuro, no meu íntimo, 
Faço do caos o palco e do silêncio, o ritmo.

Lacrimejo na areia negra de noites em branco,
Amanhece o luto nas olheiras alheias que eu planto,
Lágrimas viram veneno nas páginas do nosso livro. (Marfim, Xtinto)
E mesmo manchado, procuro cura nas notas,
Porque a dor também rima quando a alma se dispersa de rotas.
O meu coração, eu já não sei se brilha,
Espero pelo momento exacto,
Só para provar que a serpente é rato. (R.I.P Holly Hood, Holly Hood)
Cada verso é cicatriz que me faz mais vivo.
Se não fosse o amor, eu não sentia saudade.
E o facto de ter-te magoado, isso é amor, portanto faz parte.
A gente parte o coração mesmo morando dentro dele. (Se Não Fosse Amor, Força Suprema)
O silêncio guarda segredos que só eu sei.
Mesmo quando a ausência se atravessa ao peito,
É no conforto da saudade que me deito.
Pela janela do teu T0, onde os armários estão vazios de recordações,
Só o cheiro do cinzeiro é que preenche a solidão do ser...
Que nem sequer te pertence. (Depois das 24, GROGNation)
Mas mesmo o vazio tem som, e é nele que encontro o meu dom.
Tenho anjos a olhar por mim.
Dão-me força, dão coragem, confiança no meu instinto.
Dão-me inspiração para expressar tudo aquilo que eu sinto. (Desperta, Papillon)
E é nessa união que encontro abrigo,
Entre o que fui e o que trago comigo.
Porque em cada fim há um início e em cada início uma história,
É hipótese de uma nova trajetória, porque glória
Também faz parte desta arte. (Também Faz Parte, Sam The Kid)
E na arte encontro amor,
Mesmo que o mundo o parta em dor.
Amor ninguém compreende, é transcendente,
Durões dizem que não amam porque é sinal de fragilidade,
Mas eles são os mais frágeis porque não têm a outra metade. (Mulher Que Deus Amou, Valete)
Nela vejo o reflexo do que quis ser mas nunca admiti.
Entre o medo e o toque, deixo o orgulho cair,
Porque só quem se entrega é que aprende a sentir.
E o que o meu conto conta é simplesmente
Eu sou uma criança
E tá provado nos teus lábios,
Só mais uma dança. (Serenata, Slow J)
Dança que congela o caos,
E faz do amor um eterno araus.
Não há campa com jardim, dá-me em vida uma rosa morta,
Não vou esperar o fim para te dizer que a tua voz importa. (3,14, Gson)
E é nesta vida que procuro guarida, 
Para quando me deixares em ferida.
Mas ficou pa viver tantas noites ao relento,
Momentos que ficam pa sempre, cem por cento no momento. (Último Beijo, Bispo)
Guardei promessas que o vento levou,
A contar estrelas num céu tão denso.
Já fui ensinado, agora professor.
Só quero amor, eu não quero a dor,
Tornei-me apenas sonhador. (Mistura, Julinho KSD)
Da queda aprendi o preço da calma,
Hoje o futuro cabe-me na palma.
Mesmo assim eu espero não partir o espelho.
Como uma esfinge, eu fingo que sou de pedra,
Que sou dura na queda, mas a perda eu evito. (Vinho Velho, Capicua)
Cada queda é lição, cada espera é centelha,
E o tempo, paciente, mostra o que ainda se anseia.
"Se tu deres tempo ao tempo, o tempo dirá que tu vais ser alguém",
Já dizia a minha mãe.
Nunca fui de esperar, sempre me resguardei no passado,
Sei que águas passadas não movem moinhos,
Mas ainda assim tento movê-los sozinhos. (O Amanhã, Plutónio)
Já guardei memórias em papéis rasgados,
Amores curtos, dias longos, fardos.
Se amanhã eu não voltar p'ra casa,
Que me recordem nos versos guardados.
Guarda as minhas palavras em caixas na sala,
Pa' se um dia eu não aparecer. (Menino da Mamã, Piruka)

Palavras que ficam, ecoam e rezam,
Mesmo quando os corpos já não se pesam.
O peso da máquina do tempo, despenso a ginástica
Que leva o ódio pro' pódio, não posso viver nessa prática.
É para evitar os destroços dos nossos, (Chá Preto, T-Rex)
Que no ar, te procuro diante da lástima.
Procuro-te enquanto canto.
Sentia a atração mas já não resistia,
Pois agora sabia que te perderia uma dia. (Quantos Dias, ProfJam)

Ainda assim nas palavras encontro o encanto…

Se tu tens tanto para ganhar, 
Porque é que apostas em perder?
Sei que tou farto de avisar mas mesmo assim volto a dizer, (Não É Só Chorar, Dillaz)
Quem ama arrisca, mesmo sabendo que pode doer.

Estas letras funcionam como uma conversa íntima, onde somos convidados a sentir, a questionar e até a confrontar-nos com as nossas próprias vivências. É no espaço entre o dito e o não-dito, entre o verso e a ligação que criamos na nossa própria mente, que o rap se revela transformador. Fala connosco, não apenas a partir do artista, mas com a nossa própria capacidade de interpretar e de refletir com aquilo que ressoa dentro de nós. Ler nas suas entrelinhas é fazer coexistir a poesia, dor e esperança e perceber que cada letra, por mais crua que pareça, carrega uma profundidade capaz de nos tocar como nada antes tocou.


Rapública foi a primeira compilação de rap português. Lançada em 1994, alcançou a certificação de Disco de Prata. O movimento que originou esta compilação, considerada o primeiro álbum de rap português, teve raízes profundas na Margem Sul do Tejo, em locais como Almada, Barreiro, Amora e Seixal. Em regiões marcadas pela forte presença de comunidades cabo-verdianas, o hip-hop floresceu como expressão cultural e resistência social.

Capa original do álbum

Mais do que uma antologia, Rapública abriu caminho para uma geração inteira de artistas que viriam a definir o rap nacional. A partir dela, nomes como Boss AC e Black Company, ganharam projeção e serviram de impulso à consolidação do hip-hop português.

Rap declama-se à sociedade, ainda que lhe tapem os ouvidos. É neste confronto entre o real e o simbólico que o rap ganha a sua força: não suaviza a verdade, mas também não se limita à sombra.

Rap é história, resistência, verdade.

Grito que vive, que parte e que reparte.

Uma só voz, um só mundo, uma só arte.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Madalena Cardoso

Editado por: Leonor Oliveira

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