A União Europeia atravessa um momento crítico: submissa economicamente a Washington, pressionada militarmente pela NATO e incapaz de afirmar liderança diplomática em crises humanitárias como na Ucrânia e em Gaza, a Europa arrisca-se a perder a sua voz no mundo e a tornar-se mera figurante na história do século XXI.
A União Europeia atravessa uma encruzilhada histórica. Nos últimos meses, três acontecimentos interligados vieram expor, com crueza, a crescente erosão da tão proclamada autonomia estratégica europeia: o novo acordo comercial estabelecido entre a Comissão Europeia e os EUA; a decisão tomada no âmbito da 38ª Cimeira da NATO, em Haia, de aumentar a despesa em defesa para 5% do PIB de cada Estado-membro até 2035; e a crescente incapacidade europeia de se insurgir como um ator diplomático de excelência que defenda o direito internacional, proteja os direitos humanos e assuma uma posição mediadora nos conflitos que assolam a Palestina e a Ucrânia. Ambos os desenvolvimentos são apresentados como inevitabilidades estratégicas, mas são, na verdade, sintomas de uma Europa que está doente e em recuo, fazendo jus às suas próprias incoerências, sendo submissa a lógicas externas e alheia ao potencial do seu próprio projeto político.
O novo acordo comercial celebrado com os Estados Unidos há poucos dias representa uma cedência, sem contrapartidas vantajosas, da Comissão Europeia perante o governo protofascista de Donald Trump, algo que deve ser encarado com a maior das gravidades pelos cidadãos e governos europeus. Apresentado como uma solução pragmática para evitar uma escalada tarifária, este acordo consagra, na prática, uma submissão moral e normativa da Europa à agenda protecionista norte-americana. Com tarifas estabelecidas em 15% sobre a maioria das exportações europeias para os EUA e contrapartidas desequilibradas no acesso ao mercado americano, o acordo agride setores estratégicos europeus como a agricultura, a indústria automóvel e a indústria farmacêutica. A Comissão Europeia, sob a liderança de Ursula von der Leyen, legitima assim uma relação comercial profundamente assimétrica, desrespeitando o princípio da reciprocidade e alienando a autonomia económica do continente em nome de uma estabilidade ilusória que catalisa, ainda mais, um processo de declínio europeu no panorama global.

Ao aceitar estas condições, a União Europeia institucionaliza uma relação comercial de sentido único, em que Washington dita as regras e Bruxelas curva-se subservientemente. Longe de qualquer realismo diplomático, observa-se um ato de capitulação política conscientemente assumida e cobardemente ilustrada por Von der Leyen numa fotografia que correu os quatro cantos do mundo, onde esta e a restante delegação europeia surgem, ao lado de Donald Trump, nitidamente sorridentes e a erguer o polegar, um símbolo grotesco da estética triunfalista do trumpismo. Num tempo em que a Europa deveria afirmar-se como potência normativa global, a escolha foi ajoelhar-se perante o bullying político da administração americana, renunciando à defesa da sua soberania e participando, voluntariamente, num exercício de propaganda desenhado ao milímetro para alimentar a narrativa de força e humilhação promovida por Donald Trump. Parafraseando as palavras do primeiro-ministro francês François Bayrou, o dia 27 de julho de 2025 ficará na História europeia como “um dia sombrio”.
No plano militar, o cenário não é mais animador. A decisão tomada na 38ª Cimeira da NATO, de elevar a despesa em defesa para 5% do PIB de cada Estado-membro até 2035, afigura um desvio colossal de recursos públicos que deveriam ser prioritariamente aplicados na coesão social, na transição climática ou ainda na inovação tecnológica. Este aumento exponencial, visto como o maior desde a fundação da Aliança, não surge de uma decisão estratégica europeia, mas como fruto da ameaça americana em deixar de assegurar o seu “compromisso” na defesa do continente europeu.
Mais do que reforçar capacidades próprias, esta escalada orçamental alimenta o complexo militar-industrial americano, dado que uma parte substancial dos novos investimentos reverterá, como já é visível, para a aquisição de armamento, tecnologia e consultoria militar Made in USA. Assim, os contribuintes europeus financiam, direta e indiretamente, a economia de guerra americana, ao mesmo tempo que os orçamentos nacionais para educação, saúde, habitação e transição climática são reduzidos sob o pretexto de “proteger a Europa”. Esta decisão, que se apresenta como pragmática, é na realidade um erro estratégico de longo alcance, já que ao substituir-se o investimento em autonomia tecnológica, resiliência civil e capacidades europeias por uma corrida armamentista sem critério comum, os Estados-membros da UE estão não só a sacrificar o seu futuro socioeconómico, como a afundar qualquer pretensão de uma política externa e de segurança verdadeiramente europeia. O projeto de uma defesa comum, integrado, interoperável e não subordinado à NATO, plasmado nos tratados e reiterado nos discursos, transforma-se, assim, em promessas ocas.
Durante décadas, Bruxelas foi uma referência de poder civil, de mediação, de construção de paz e de multilateralismo. Ao aceitar sem resistência a lógica do rearmamento ditada por Washington, a Europa afasta-se dessa vocação histórica e aproxima-se perigosamente de uma lógica imperial, reativa e belicista que à primeira vista pode soar como um eco do seu passado, mas que, na verdade, se revela sem qualquer autonomia real, comprometendo a identidade política da União. No fundo, trata-se da renúncia voluntária à autonomia estratégica concebida por Macron, da diluição da visão europeia num bloco militar liderado por outros e da traição silenciosa dos valores que fundaram o projeto europeu.

Todavia, de todas as esferas de análise talvez a mais preocupante seja o vazio moral e diplomático em que a União Europeia mergulhou. Incapaz de agir de forma autónoma, a nossa União revela-se impotente – ou cúmplice – face a dois dos conflitos mais significativos do nosso tempo: a guerra na Ucrânia e o genocídio em curso em Gaza. Na Ucrânia, a Europa transformou-se numa extensão logística da estratégia militar norte-americana, contribuindo para o prolongamento de uma guerra sem horizonte político claro ao mesmo tempo que continua a alimentar a máquina económica russa face à falta de unanimidade dos seus Estados-membros no rumo a adotar perante Moscovo. Em Gaza, mantém um silêncio ensurdecedor perante crimes de guerra e a violação sistemática do direito internacional humanitário, limitando-se a hesitações burocráticas e discursos estéreis que começam a suscitar ações unilaterais de alguns Estados-membros, como a Espanha, a Eslovénia e a Irlanda, que não se conformam com a cumplicidade de Bruxelas.
A União Europeia, que no passado ousou ser mediadora, torna-se, agora, uma mera espectadora travestida de cumplicidade passiva, encontrando-se a sua política externa refém de alianças assimétricas, da chantagem securitária e da cegueira moral, perdendo a autoridade que outrora teve como potência civil, promotora da paz e do direito internacional. O prestígio europeu, construído sobre décadas de diplomacia multilateral e direitos humanos, está a esvair-se entre sanções seletivas, alinhamentos questionáveis e incoerências gritantes.

No caso específico de Gaza, tal incoerência é ainda mais flagrante dada o genocídio perpetrado pelas autoridades israelitas que, para além de multiplicar mortes e a ruína deste território palestiniano, provoca igualmente a destruição de inúmeras infraestruturas e programas financiados pela União Europeia que deveriam ser símbolo da sua ação humanitária e diplomática, mas que acabam reduzidos a escombros. Ainda assim, perante tudo isto, Bruxelas não demonstra a mínima coragem política para exigir responsabilidades ou condicionar as suas relações com Telavive, passando a Europa a deixar de ser voz de consciência no mundo para se tornar um eco distante da vontade alheia.
Tal submissão não é apenas uma questão de fragilidade política, mas também a aceitação consciente de um papel secundário num palco internacional que a própria Europa ajudou a moldar. Ao abdicar de agir com firmeza em Gaza e na Ucrânia, a União Europeia envia ao mundo a mensagem de que a sua “autonomia estratégica” é apenas uma fórmula retórica e não uma realidade tangível. Esse vazio de liderança deixa espaço para que outros atores, dos Estados Unidos à China, passando pela Rússia e até potências regionais como a Turquia ou o Irão, definam as regras do jogo, enquanto Bruxelas se limita a reagir, quase sempre tarde e mal.
O risco desta postura é duplo. Por um lado, corrói internamente o projeto europeu, alimentando a desconfiança dos cidadãos que veem as instituições incapazes de defender valores que proclamam como universais. Por outro, fragiliza a sua autoridade externa, reduzindo a União a um bloco de relevância económica e irrelevância política, dependente da administração americana para garantir segurança e da boa vontade de outros para manter canais diplomáticos abertos. Não é por acaso que, no Sul Global, cresce a perceção de uma Europa hipócrita, pronta a invocar o direito internacional quando lhe convém – como no caso da Ucrânia – mas complacente ou conivente quando se trata de aliados estratégicos, mesmo perante evidências mais do que documentadas de crimes de guerra e outro tipo de ações que chocam de frente com os ditos valores europeus. Esta incoerência mina décadas de capital diplomático e neutraliza qualquer pretensão de liderança moral.

No fundo, o colapso estratégico europeu revela-se em três atos interligados: a submissão comercial perante Washington, a adesão acrítica à escalada militar ditada pela NATO e a capitulação diplomática face a crises como a da Ucrânia e o genocídio em Gaza. Estes não são episódios isolados, mas expressões convergentes de uma União que renuncia à sua autonomia política, sacrifica a sua soberania económica e abdica da sua vocação histórica como potência civil e promotora do direito internacional.
Se o projeto europeu nasceu para ser um modelo alternativo ao cinismo geopolítico das potências tradicionais, hoje parece condenado a reproduzir essas mesmas lógicas, mas sem o peso estratégico que lhes dá eficácia. O resultado é um continente que fala muito, age pouco e, quando age, fá-lo seguindo um guião escrito por outros. E uma Europa que abdica de escrever o seu próprio guião está, inevitavelmente, a preparar-se para ser apenas figurante na história do século XXI.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Tomás Batista
Editado por: Marta Neves


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