A Próxima Grande Moeda Do Século XXI

Escrito por

Um familiar meu precisava de vender um carro. As condições do veículo não eram as melhores. 500€ foi o valor obtido pela venda. Quando confrontei a pessoa perguntando porque é que não vendeu as peças individualmente (opção que compensava muito financeiramente), respondeu-me com outra questão: “E o tempo para tratar disso?”.

Uma mão a segurar uma moeda de uma libra e outra de um euro. De fundo, na tela do portátil, a versão em website do ChatGPT (Fonte: José Pereira)

Não te enganes, o título pode ser sugestivo, mas não é o tempo a próxima grande “moeda” do século XXI. Essa já é, nos tempos que correm, a “moeda” mais relevante.

Mas como é que chegámos até aqui e afinal onde é que este chato editor que vos escreve vai tirar estas previsões de uma suposta próxima grande “moeda” de troca do século XXI. Tudo a seu tempo. Para entender como começámos a desenvolver uma outra grande “moeda” de troca, precisamos de ter algumas ideias de como é que o tempo veio parar a essa situação.

O Tempo Como “Moeda”

Primeiro, e para tudo fazer algum sentido, defina-se desde já o tempo como um bem escasso. Porquê? É limitado (temos apenas 24 horas por dia), não é reutilizável e exige escolhas constantes. Numa época em que o ritmo de trabalho é cada vez maior, as exigências do mercado são mais extensas e a influência das redes sociais digitais promove o imediatismo e menor capacidade de alocar atenção significativa a determinado facto/acontecimento, este bem torna-se especialmente relevante.

ChatGPT com um prompt a pedir as horas. (Fonte: José Pereira)

Mas o tempo pode ser uma moeda? As empresas compram tempo, pagam para que prestemos serviços, e os particulares vendem-no, sob a forma de trabalho, em troca de salário. As empresas também o compram indiretamente, através de outsourcing ou investimento em tecnologia que aumenta a eficiência. libertando tempo ou necessidade de outros recursos (outsourcing). Ou seja, tempo pode ser negociado, mesmo que não seja uma moeda no sentido estrito.

O valor de cada “unidade” de tempo também varia consoante o contexto. Uma hora vale mais ou menos dependendo do momento, do local e da atividade. Por exemplo, para um bar de praia, uma hora às três da manhã vale menos que uma hora ao final da tarde. O bar de praia vai procurar comprar tempo em que alguém lhe providencia um serviço durante a manhã ou tarde e, possivelmente, não o deve fazer (se fizer, será com menos regularidade) durante a madrugada cerrada.

Não sendo, no sentido literal do termo, uma moeda efetivamente, o tempo pode ser usado como “moeda” de troca. Algo que pode ser disponibilizado a outro agente em troca de outro recurso.

Ao longo das várias fases da revolução industrial e digital, esta “moeda” tem ganhado mais peso. Com o advento das tecnologias de informação e comunicação digitais, passou a ser a mais relevante “moeda”.

ChatGPT alivia o autor deste artigo sobre o seu estado de saúde mental (Fonte: José Pereira)

Passamos cada vez mais tempo nas redes sociais digitais. Paradoxalmente, temos cada vez menos tempo disponível. No tempo que estamos nas redes sociais digitais, dedicamos cada vez menos tempo a cada um dos conteúdos que nos são apresentados pelos algoritmos por trás destas plataformas. As plataformas apresentam-nos estímulos cada vez mais diversos, e a personalização de apresentação de conteúdos através de algoritmos e inteligência artificial para uma experiência mais persuasiva e que incentive ao prolongamento do uso das redes sociais digitais é uma realidade para colmatar os desafios da menor atenção alocada por conteúdo e para perseguir objetivos comerciais das empresas que controlam as redes nos seus portefólios.

Mas porque é que esta é a mais relevante “moeda” dos nossos tempos? O leitor mais cético desta abordagem deve estar a questionar-se se, por esta visão, deverá deixar a faculdade ou o seu trabalho e assim ter mais quantidade de “moeda” disponível. Infelizmente, a questão é um pouco mais complexa.

Utilizamos e organizamos o tempo para otimizar a quantidade de moeda monetária que conseguimos obter, se partirmos de pressupostos de racionalidade na utilização dos recursos. Nós não somos por natureza obrigados a seguir um curso superior, mas investimos o nosso tempo (e dinheiro) nisso porque, de forma geral, considera-se que o prémio salarial ou as competências passíveis de ser desenvolvidas compensam.

Mas então, a moeda que perseguimos principalmente é a com valor monetário, isto é, o dinheiro, certo? Sim, e o dinheiro continua a ser um bem escasso, contudo, não considero esta a moeda mais relevante porque, no contexto das economias desenvolvidas, há já várias formas de obter dinheiro e conhecimento credível disponível de forma geral para otimizar essa obtenção. Ainda assim, as desigualdades no rendimento aumentam. Num mundo que estou a pintar cheio de unicórnios e arco-íris, poderíamos ser levados a pensar que a rota deveria ser exatamente contrária.

Porque raio não temos então mais dinheiro quando temos mais vias disponíveis e conhecimento passível de ser adquirido facilmente? Não me vou debruçar sobre o interesse que as pessoas têm pelas matérias relacionadas com a obtenção do dinheiro (os conhecimentos credíveis necessários para este tipo de objetivo). As pessoas que quiserem seguir esta cruzada vão deparar-se com um grande problema: A falta de tempo para navegar neste mar de informações e possibilidades.

Nem todos temos de ser empreendedores, economistas, especialistas em finanças ou derivados. Todos temos, no entanto, de gerir o nosso rendimento ou da nossa família.

Qualquer pessoa pode investir no mercado de ações, independentemente de ter mais ou menos rendimentos. Pode até, eventualmente, obter resultados relativamente satisfatórios a longo-prazo com estratégias mais ou menos simples de investimento. Contudo, é preciso, ainda assim, estudar para reduzir os riscos de perder dinheiro. Isso leva tempo, para reduzir o risco para um nível aceitável. Pode demorar muito tempo se não tivermos formação sobre o assunto.

Não é viável para a maioria das pessoas não vender tempo às empresas em troca de uma quantidade estável de dinheiro para, em alternativa, incorrer nestas práticas ou no estudo necessário para elas.

Ou seja, as possibilidades para conseguir dinheiro até estão ao nosso alcance em teoria, mas na prática há uma barreira, em grande parte, determinada pela quantidade de tempo que temos ao nosso dispor e que podemos alocar. O mesmo se aplica, obviamente, à criação de um negócio, obtenção de conhecimentos especializados ou até à simples venda de um automóvel. No mundo de hoje, com o desenvolvimento alcançado das infraestruturas e serviços das economias desenvolvidas, o problema para a obtenção de riqueza é o tempo, não as possibilidades ao nosso alcance.

Uma “Moeda” Popular E Eficiente

O mês é novembro de 2022. O início da mudança da hegemonia desta “moeda” começa o seu caminho. É lançada uma demo do ChatGPT, um website/aplicação de inteligência artificial generativa que ganhou imensa popularidade e um uso alargado um pouco por todo o mundo. Com a possibilidade de perguntar questões através de um chat e obter respostas rápidas às nossas necessidades de informação, este tipo de inteligência artificial foi sendo aprimorada. Não muito tempo depois, começaram a surgir competidores com características semelhantes e alguns mais especializados, por exemplo, em escrita académica, criação de música, imagens e toda uma outra panóplia de atividades que podem agora ser realizadas de forma mais cuidada. Em causa, apenas a necessidade de introduzir-mos um comando (prompt, o input) para produzir um resultado (output) de forma célere.

Sam Altman, CEO da OpenAi, empresa que desenvolveu o ChatGPT (Fonte: The New York Times)

“De forma célere”. Sim, o leitor mais atento pode ter começado a perceber algo. Este tipo de ferramenta pode ajudar-nos a adquirir mais tempo. Para além do mais, a esta altura, as versões gratuitas destes websites/aplicações permitem já a utilização de funcionalidades relativamente avançadas e com resultados passíveis de ser utilizados de forma significativa num contexto profissional ou académico, mediante revisões. Isto é, não precisamos necessariamente de gastar dinheiro para a utilização destas tecnologias que nos permitem adquirir tempo.

Mas então não pagamos nada? Como diz a expressão popularizada pelo economista Milton Friedman, “não há almoços grátis”. Para além de estarmos a pagar a estas plataformas com os dados do que fazemos nos meios digitais e/ou em situações passíveis de ser captadas e integradas em sistemas de informação através dos dispositivos e/ou da Internet of Things (IoT), e ainda com a informação que disponibilizamos na web através da sua navegação, há algo que poderá ser ainda mais valioso e que pagamos quando decidimos usar estes recursos.

ChatGPT expõe informações sobre o autor até ao tutano. (Fonte: José Pereira)

A Autonomia Como “Moeda”

Até ao fim do 8º ano nunca fui um bom aluno. As minhas notas variavam entre o mau e o satisfatório, com algumas (raras) exceções a resvalar para o bom. No ensino primário havia duas coisas que eu detestava: A escola e a matemática, acima de tudo. A minha professora juntava-me com uma colega de propósito para que eu conseguisse fazer as tarefas dessa disciplina. Os números não me despertavam grande interesse ou curiosidade. O resultado: a minha colega executava o trabalho todo e a única coisa que eu tinha de fazer era copiar, já que nunca me foram colocadas barreiras significativas, especialmente da parte dela.

Para que é que isto interessa? A questão é que nesta situação estava a acontecer uma transação, do meu ponto de vista, muito significativa. A “moeda” em causa é a mesma que pagamos quando estamos a utilizar a Inteligência Artificial Generativa. A nossa autonomia.

Entenda-se a autonomia como a capacidade de alguém pensar e definir objetivos por si e não pela reação a algo ou determinação/influência significativa e/ou persuasiva por forças externas. Implica consciência, escolha informada e possibilidade de dizer não.

De modo a ganhar mais tempo para outras atividades, delegamos tarefas à inteligência artificial generativa que irá produzir um output de acordo com as necessidades expressas no input. Assim, ir-nos-á poupar tempo, no que respeita à persecução da tarefa pedida, pelo custo da autonomia no ato de a realizar.

O património do autor é revelado pelo ChatGPT (Fonte: José Pereira)

Vamos colocar de parte a possibilidade de olhar para os outputs com conhecimento de causa e espírito crítico. De modo a simplificar e generalizar o nosso raciocínio, assuma-se que os outputs são percecionados como hipóteses de solução muito plausíveis de modo geral para as necessidades expressas pelos utilizadores nos inputs que proporcionam.

Quando é gerado um output, isto é, um resultado, podemos observar uma de um conjunto variado de opções. Podemos utilizar o output tal qual nos é fornecido, podemos pedir que outras aplicações ou websites alterem o output gerado para estar mais em conformidade com o que é pretendido ou, na nossa generalização, podemos ainda retirar alguma inspiração das ideias que nos são providenciadas ou aprofundar ideias que já tínhamos pensado/elaborado através do uso do output gerado ou da pesquisa e verificação das informações que tornaram possível gerar o resultado.

Seja qual for a nossa opção e mesmo que sejam até identificadas e reconhecidas imprecisões ou algo falso na informação fornecida, a transação já foi feita. O recurso de inteligência artificial generativa influenciou o meu curso de ação, isto é, os meus objetivos de pesquisa foram moldados pelo quadro de factos relevantes apresentado no resultado gerado. Eu abdiquei da minha capacidade de refletir autonomamente sobre a tarefa em causa (assumindo que tenho qualificações para dita tarefa), agindo por reação a um estímulo ou sendo influenciado por uma força externa que me apresentou um possível curso de ação.

Há alguns problemas em fazer da autonomia a próxima grande “moeda” do século XXI. Ao “pagar” autonomia para adquirir tempo e/ou outro tipo de proveito, estamos constantemente a perder o espírito crítico pela aceitação dos resultados da tarefa delegada a, por exemplo, uma inteligência artificial generativa. Há menos esforço criativo e, por sua vez, menos treino dessas habilidades que, assim, não se desenvolvem.

Isto leva-nos a uma consideração importante: Se perdemos cada vez mais o espírito crítico e a capacidade de nos pronunciarmos sobre as tarefas que delegamos no sentido de determinar ou ser relevante a qualidade dos resultados que nos são apresentados ou a sua fiabilidade, então, quanto mais gastamos autonomia, não só gastamos a nossa autonomia disponível, como também reduzimos o limite máximo de autonomia que podemos ter disponível, mantendo-se tudo o resto constante (recorde-se a definição dada de autonomia para entender).

Moedas diferentes, tendencialmente mais pequenas da esquerda para a direita (Fonte: José Pereira)

Pense-se na autonomia como um conjunto de moedas que cada um de nós detém. Há um problema. A única forma de guardar essas moedas é num porta-moedas. O valor correspondente às moedas não pode ser guardado através de uma conta bancária. À medida que gastamos autonomia e nos escusamos de exercer forças de controlo sobre as consequências (resultados) da nossa “compra”, o nosso porta-moedas vai encolher. Sendo assim, torna-se fisicamente impossível armazenar a mesma quantidade de moedas que antes do seu gasto era possível (note-se que não se pode comprar outro porta-moedas ou fazer quaisquer modificações pretendidas ao atual por iniciativa deliberada do seu detentor).

Quando eu copiava os exercícios de matemática da minha colega, não desenvolvia as minhas competências naquelas matérias que, ademais, eram as bases para cruzadas muito mais complexas no vasto universo dos números. Apesar de hoje nutrir um carinho secreto pela matemática e recusar práticas fraudulentas (isso foi acabando entre o 3º e 5º ano, gradualmente), sinto-me muito prejudicado por não ter desenvolvido as minhas competências nesse sentido da forma adequada desde tenra idade. Eu até adquiri os conhecimentos que precisava para passar, mas nunca consegui ser bom, muito menos excecional em praticamente nenhum dos anos posteriores que fiz a disciplina.

Já não é só o trabalho físico a ser delegado, mas também os processos mentais de decisão e planeamento. Com o que é que ficamos nós?

O Império Das Bananas Para Que Caminhamos

No contexto da inteligência artificial, os Bancos Centrais são as grandes empresas tecnológicas, nomeando algumas: a OpenAI, Google ou Meta. Têm cada vez mais o controlo sobre a circulação da autonomia. E têm fornecimento de hardware de outras empresas interessadas e envolvidas, como é o exemplo da Nvidia.

Nós colocamos a nossa fé nestas ferramentas sem pensar minimamente em implicações do género das que estão alertadas ao longo deste artigo. É claro que a inteligência artificial pode ser um excelente recurso para nos auxiliar no nosso trabalho, mas qual o custo de oportunidade de eu ganhar tempo e ter um trabalho que delego a essas ferramentas feito a um nível pelo menos aceitável? Poderemos ser levados a pensar que este é o caminho do outsourcing da razão. E a partir do momento em que isso acontece, a razão é definida por quem não a perdeu e lucrou de grande com estas pequenas grandes “moedas”, muitas vezes que parecem invisíveis, mas será que são mesmo tão impercetíveis?

A qualidade dos estimulantes consumidos para a escrita deste artigo é posta em causa pelo ChatGPT (Fonte: José Pereira)

Aviso desde já que estou longe de ser um especialista em seja o que for. Isto é não mais do que uma reflexão de um estudante de ciências da comunicação que se viu com uma quantidade abastada da “moeda” tempo. Especialistas ou pessoas que de facto percebam do assunto estão mais que autorizadas a arrancar alguns cabelos com coisas que aqui podem ser lidas. Peço, ao menos, que se aproveite algo daqui para potenciar discussões sobre algumas questões. Nomeadamente, sobre para que tipo e sociedade é que estamos a caminhar e quais são realmente os problemas que enfrentamos hoje. Com o crescimento de discursos populistas, somos incentivados a olhar para todo o tipo de bodes expiatórios. Esquecemo-nos de olhar para nós próprios, para o que aceitamos sem questionar e para a forma como mudamos sem sequer notar.

Tomei a opção de não incluir referências a obras, autores e outros derivados no corpo do texto para a experiência de leitura não ser mais massacrante do que eu consigo prestimosamente providenciar. No entanto, chamo a atenção que o que eu escrevo aqui é baseado em leituras de autores proeminentes nas ciências da comunicação, essencialmente. Alguns exemplos relevantes e em que me baseei mais são apresentados: An Introduction to Communication and Artificial Intelligence, de David Gunkel; The Age of Surveillance Capitalism, de Shoshana Zuboff; The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism, de Nick Couldry e Ulises Mejias; We Are Data, de John Cheney-Lippold. São alguns exemplos mais consideráveis e que espero ser suficientes para não me acusarem de plágio.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: José Pereira

Editado por: Pedro Cruz

Deixe um comentário