Avocado & Matcha

Escrito por

Avocado & Matcha

Uma breve história de um brunch com (di)sabores (re)descobertos. Estão servidos?

Em 2013 comecei a gostar do conceito de brunch. Tinha ido fazer o meu primeiro intercâmbio cultural, quando me foi apresentada a ideia do pequeno almoço tardio. Agradeço, por isso, ao intercambista inglês que estava perdido naquela pequena cidade andaluz. Na lógica inventiva da nossa juventude, o brunch era a síntese perfeita entre o botellón da noite anterior e a siesta do dia seguinte. Salsichas, bacon, torradas, tomates e um pouco de feijão (que a princípio parecia ali deslocado) formavam a fórmula perfeita de absorção e absolvição do álcool. Café da manhã e almoço, pós ressaca e pré-siesta – o que mais poderia eu querer? É para isso que intercambistas existem. Mas, claro, aquilo tudo ficava ocultado, era um segredo nosso, não queríamos os nossos pais julgando as nossas escolhas de vida acadêmica.    

Quatro anos depois, numa nova crise existencial, decidi ir viver em uma cidade cosmopolita australiana, inundada de placas neon que gritavam ‘brunch’. Foi lá onde tive o meu primeiro contato com torradas de frango barradas em abacate. Não sei como descrever a sensação. Enumerava mentalmente tudo o que era da cor verde e roxa que eu cresci aprendendo a detestar, e estava determinada a fazer disto meta de vida. Espinafres, berinjelas, abacates, beterrabas, rúculas, ervilhas, pepinos, batata-doce, couves. Ainda tinha luteína suficiente para identificar de longe a cor predominante dos ingredientes das saladas. As ervilhas do arroz, por exemplo, catava uma a uma. Foi onde aprendi a ser resiliente e paciente – tarefa que minha mãe jamais toleraria. As azeitonas na pizza eram sempre uma outra grande confusão. Tudo aquilo que tocava dizia estar indubitavelmente contaminado. Não subia nos pés de jambo da casa da minha avó: não iria arroxear o meu lambuzamento.

Quase que por ironia, Melbourne levou-me para um restaurante de saladas, com a ressalva de que a população local tem um hábito dito saudável acima da média, bem diferente do meu então estilo de vida. Aquilo era um negócio grego, mas o follow-the-money eram as saladas feitas pela curadoria de alimentos escolhidos pela sua consciência. Eu passava dias a fio fazendo combinações verde e roxas. E quando não as fazia, sonhava que estava fazendo. Certamente aqueles clientes permaneceriam jovens e sem problema de coração. Foram as montras de enaltecimento ao abacate, não o custo de vida australiano, que me venceu. O abacate era item de feira caro, e era quase uma ostentação poder comer algo timidamente encostado por ele. Eu deveria saber usufruir dos privilégios de onde estava.

Mas foi nos brunches aesthetics onde comecei a experimentar abacates com ovos. Ali refletia brevemente sobre o quão insuficiente era para o meu corpo permanecer rijo com aquelas pequenas torradas pinceladas em hollandaise sauce. Aparentemente, fundir refeições virou sinônimo para atardar o café da manhã nos fins de semana – e superfaturar ovos. Você também passava a ser livre para comer e fotografar panquecas até às cinco da tarde, e eu já me via comendo as de mirtilo. Aquelas fotos tinham glamour equivalente aos dos copos de café do Starbucks. Àquela conjuntura social chamava-se brunch. Quase que por ironia, sentia alguma nostalgia dos jambos não comidos lá atrás, como das ressacas com significado interno dos nossos pós botellón.

Foi num destes encontros que uma amiga japonesa introduziu-me ao matcha com blend de pó açucarado. Em paralelo falava do ritual do chá e da onipresença das folhas moídas no Japão. Qual não foi a minha surpresa quando comecei a trabalhar em uma cafeteria onde podia tomar o tal matcha com leite de amêndoa ad infinitum. Era engraçado como naquele momento eu achava que estava fazendo algo diferente, cheio de história, ritual e antioxidantes – sem pensar nos aromas artificiais. Me vinha a particularidade do momento com a Yuka. Enquanto todos pediam café, eu pedia o tal matcha latte para começar o dia, sem bem equacionar os rituais ancestrais dissolvidos naquela bebida. Ela falava de significado, eu focava no produto, e atribuí ao produto significado.

Dois anos depois, quando voltei para casa, chamavam-me de sofisticada. Agora comia alimentos verdes e roxos e tinha um paladar entendido por requintado: matcha, berries e avocados. Eu tinha crescido porque tinha sido cooptada pela agenda mercantil verde – de luxo. Anunciada em cada canto que ia. E os meus fetiches levaram-me a desconstruir outras texturas verdes e arroxeadas. É irônico rever: querer ser incluída fez-me experimentar outras coisas, desmistificar alimentos, tentar improvisar sabores, viver outros paladares. Achava que estava desbravando culturas ao tornar alimentos agradáveis ao meu paladar, ao incorporar sabores à paleta de cores. O democrático mundo da engenhosidade dos alimentos foi-me apresentado lá fora, por pessoas de diferentes lugares, com diferentes conceitos e histórias. O que eu não via é que passavam a ser apresentados por terem se tornado objetos de desejo.

Hoje, em Utrecht, sentada em um destes brunches aesthetics, espaçosos, com decoração em vidro, verde-musgo e terracota, vejo com algum sarcasmo os espaços que em algum momento julguei ser disruptivo. No mundo do mais-mais-mais-mais, o minimalismo excludente virou obsessão. Criou-se um modelo prêt-à-porter de sustentabilidade, que segrega lugares de pessoas, que elitiza o exotismo, que não apenas não democratiza o que é natural, como que culpa quem não tem essa disposição e consciência ecológica. E a relação é de novo de consumo, tendo sido o abacate e o matcha cooptados pelo green washing gourmet. Diante do visível paradoxo da sustentabilidade performática, passei a comer abacates apenas em casa, enquanto reduzo o meu consumo de água – para sobrar mais para as monoculturas de abacate – e aposto no transporte público. Penso nisso com certa ironia enquanto peço o meu croissant de pistache com salpicos de coco biológico que está sendo trazido pelo – agora (re)batizado – food artist. Afinal, ocidentais que servem não podem ser ‘empregados de mesa’. Uma dúvida: qual a hashtag uso para pagar a indulgência deste lifestyle bioconsciente?

[Nota mental: Antes de escolher o seu leite vegetal, pergunte ao seu barista quantas colheres de chá de açúcar tem na composição do seu matcha latte. Também não esqueça de poupar na água do batido que vai acompanhar o seu próximo avocado toast, considerando que cada abacate pode demandar até 600 litros de água – o equivalente a três banheiras.]  

Nota: A autora escreve em português do Brasil.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Kamila Borges

Editado por: Matilde Bruno

Deixe um comentário