A terceira temporada de White Lotus é um mergulho ritualizado no narcisismo performativo

Escrito por

Mike White traz-nos de barco até à Tailândia para falar com sátira, lucidez e sutileza sobre a busca por identidade, mediada pela mercantilização da cultura e do sagrado. No fundo, o cenário paradisíaco é pano de fundo para a velha obsessão do mundo contemporâneo: a hipervalorização do eu.

Esta imagem não tem texto alternativo. O nome do ficheiro é: white-lotus-cast-032125-106646e7d7c4489e8f7fcc2715e3927e.jpg

Fonte: HBO

Na terceira temporada de White Lotus o criador da série, Mike White, nos leva a um resort na ilha de Koh Samui. Ali, entre metáforas espirituais e paisagens de cartão-postal, ele repete suas doses de humor satírico – agora embaladas em um compasso mais moroso, quase contemplativo, que exige do telespectador ocidental uma paciência não habitual.

A não-reprodução do modelo que consagrou as duas temporadas anteriores acabou por dividir a opinião da crítica, que apressou-se em compará-la, ranqueá-la, para assim valorá-la. A necessidade subjacente de designá-la a um “pódio meritocrático”, revela a lógica do imediatismo supérfulo da contemporaneidade. E é nesta escolha pela desaceleração onde revela-se a sua provocação mais sutil. O criador insiste que essa é uma temporada para quem não tem pressa, para quem quer saborear texto e imagem, o (não) dito, para quem escolhe não ignorar a Tailândia autêntica, viva e complexa – aquela que está diante dos nossos olhos, crua e não adulterada – e que os personagens mergulhados em seus próprios narcisismos masturbatórios insistem em não ver.

White Lotus dialoga com Bauman quando, em (para)texto, aborda como, na modernidade líquida tudo se transforma em produto de consumo: paz, emoção, vínculo, proteção, espiritualdiade e até o tempo. Tudo é instrumentalizado e vivido não pelo que é, mas pelo que pode oferecer em troca. Na era dos gurus da moda, da espiritualidade seletiva, do relaxamento comprado e dos milhares de exemplares de livros de autoajuda, esta temporada mostra turistas ocidentais comprando uma ideia de transformação espiritual como se fosse um item do catálogo de serviço de resort.

O resort apresenta-nos “viajantes conscientes” em busca de si mesmos, da autenticidade de suas próprias imagens comprada neste mergulho transcendental no Oriente. Exibe-nos com primazia os privilégios de um sistema de casta que camufla-se em auto-crítica. Expõe a autenticidade enquanto produto, e espiritualidade como performance. Ricos que chamam o diferente de “exótico”, dispostos a serem clientes daquelas verdades, não vivê-las. Escolhê-las em vitrines, porque intrinsecamente não almejam a desorganização das suas próprias narrativas. Ao longo da série fica evidente o desprezo, e até incômodo, com a cultura local, onde todas as vezes que os personagens tiveram alguma interação não-artificial com o que a Tailândia é – e não aquilo que pretende ser para os turistas – eles optaram por ignorar a relação de estranhamento, agiram com ostracismo e intolerância. Não falar, não habitar, afastar, exotizar. O que buscam consumir é a visão modificada (e confortável) da ilha paradisíaca, aquela vendida e adulterada a favor dos turistas, que, ao buscarem de lá sua energia, saem carregados apenas de si mesmo. Em outras palavras, o que se busca é a validação daquilo que se é.

Nesta temporada a espiritualidade de boutique é encenação, produto, pacote de experiências. A fé é usada como vitrine, pretexto. A estadia zen é escambo, não essência; é o pagar por algo que deveria ser natural.. Assistimos ao desmonoramento do sagrado em tela, em uma época marcada por violências subjacentes travestidas de positividade de experiências. O consumo estético do outro é onipresente, sendo representado quando símbolos milenares são transformados em adorno, monges e locais tornam-se figurantes domesticados, rituais espirituais transformam-se em coreografias roteirizadas e práticas ancestrais são usurpadas para propósitos hedonistas. O que é sagrado aos locais é silenciado, performado, reduzido a uma experiência instagramável.

Em seu útimo episódio, amor fati, Martin White não entrega respostas fáceis, tampouco arcos conclusivos com grandes revelações morais. Ao invés disso, provoca-nos com a ideia nietzschiana de aceitar o destino como ele é, sem negações e/ou idealizações. Assim, a reflexão provocativa que fica é: seria possível aceitar um destino que se constrói no privilégio, alienação e consumo do outro? A escolha fica pelas lentes do olhar do telespectador: de consumo do produto ou da mensagem, da aparência ou da essência. Talvez não seja a temporada mais “fraca”, talvez a mais ambiciosa. Onde, mesmo depois de ter encontrado a fórmula do sucesso, propõe-se a desafiar-se – e a nos desafiar – ao confrontar-nos cruamente com o que tanto evitamos: pelo valor certo, abrimos mão da nossa moral?

Nota: A autora escreve em português do Brasil.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Kamila Borges

Editado por: Marta Neves

Deixe um comentário