Dama Bete 20 anos depois.

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Numa entrevista franca e descontraída, fomos ficar a conhecer Elizabet Oliveira, mais conhecida por Dama Bete e por ter duas das suas músicas na série Morangos com Açúcar. É também uma das rappers que marcou a história da música em Portugal ao tornar-se a primeira MC feminina portuguesa a assinar com uma editora multinacional. Desde Blaya, Sky ou ainda Carla Prata, entre tantos outros nomes do rap português com quem colaborou, Dama Bete fala-nos de como chegou ao mundo da música, combinando outras das suas paixões como a tecnologia e o design.

Fonte: Dama Bete

Filha de mãe moçambicana e de pai português, Elizabet Oliveira nasceu em Moçambique e aos 2 anos vem para Portugal com a mãe e os irmãos. Fica a viver na Parede, Cascais, onde passa a sua infância e adolescência.

Dama Bete ou Elizabet Oliveira? São as duas uma só pessoa ou têm personalidades diferentes?

“Hoje em dia mais Elizabet ou Bete. Eu acho que a determinada altura eram a mesma pessoa. Só que a vida vai evoluir e agora olho para trás e vejo mais a Dama Bete como uma pessoa que marcou aquela fase da minha vida. E hoje, pronto, como já nem estou tão ativa na música acabo por sentir que é uma personagem do meu passado.”

Desde sempre que mostrou interesse e gosto pela música, no entanto foi por causa do irmão que começou por querer fazer música.

Há aqui um irmão que se aventurou no mundo da produção, neste caso, o Macaco Simão. Irmão de sangue ou de vida?

“É de sangue e também de vida. Acabou por ser a pessoa que sempre me influenciou. Aliás, foi ele que começou a fazer hip-pop com os amigos, em casa. Eles tinham um grupo e já na escola da Madorna, na escola secundária onde eu andava, já haviam também outros grupos, só que eram só homens que faziam. Eu sempre fui muito maria rapaz então em casa já o via a fazer e ficava com muita curiosidade sobre o que é que eles iam fazer. E ouvia-os no quarto a gravar, a fazerem rimas. E quando eles iam embora porque algum tinha que sair, eu ia ao quarto dele ver o que é que eles fizeram, meter play, porque na altura gravava-se em cassete, ouvia o que eles tinham feito e depois tentava rimar por cima.”

A família sempre aceitou bem esta vossa veia artística?

“Sim, sim. Nunca houve impedimentos. A única coisa era sempre financeiramente. Eu sempre gostei de música e um dos meus sonhos na altura era tocar guitarra. Eu queria muito aprender e pedia muito à minha mãe para ir para uma escola para aprender, e a minha mãe não me dizia que era gastar dinheiro, dizia que não tinha dinheiro para isso. E lembro-me que a minha guitarra foi aos 20 e tal anos, quando finalmente tive dinheiro para a comprar. Mas sim, a minha mãe deixava-nos fazer.”

Como todos nós enquanto pessoas temos referências (nas várias dimensões da nossa existência), Elizabet falou-nos das suas inspirações. Os primos e os irmãos sempre tiveram um grande papel nas influências da rapper. No entanto entre TLC, Destiny’s Child e Missy Elliot, foi ao assistir ao programa de talentos Chuva de Estrelas que encontrou aquela que passa a ser o seu ídolo, a cantora Sara Tavares.

E desde quando o ídolo Sara Tavares?

Para já como mulher negra não é? E nós não víamos muitas pessoas como nós na televisão, naquela época não existia, por exemplo, a MTV. O pouco que víamos na televisão, normalmente, eram artistas de origem portuguesa mesmo. Então lembro-me da primeira vez que vejo alguém como a Sara. “Uau, o que é isto?!” E a cantar Whitney Houston. Aquilo chamou muito à atenção e desde aí me tornei fã.

Mais tarde, em 2005, quando estudava numa faculdade de turismo o seu primeiro estágio foi num espaço chamado Santiago Alquimista, em Lisboa, onde acabou por fazer parte da organização do festival Musidanças. Nesse festival Elizabet conheceu Sara Tavares, após pessoas da organização terem visto o seu trabalho com a sua banda Blacksystem (2003-2005) já partilhado na internet, tendo feito a abertura do concerto da cantora. Foi então que foi descoberta, tendo sido considerada artista revelação pela revista Blitz!

“A seguir a Blitz escreveu uma review do festival e disse que eu era a artista revelação. A partir daí várias pessoas começaram a contratar-me e uma dessas pessoas, que acabou por ser o meu manager, disse que estava interessado, que tinha gostado muito, que tinha lido a review e que tinha ido ao meu site e achava que eu tinha potencial para assinar com uma editora grande.”

Qual foi a sensação de ser considerada a artista revelação ainda por cima por um jornal tão conceituado como a Blitz?

“Foi positivo porque até aí os meus concertos eram muito só dentro do hip-pop e entre nós, que já nos conhecíamos todos, e finalmente fazer algo para um festival que não tem nada a haver e perceber que fora daquele contexto as pessoas conseguiam perceber o que eu estava a tentar fazer, e também perceber que havia ali interesse no que eu estava a fazer. E eu acho que é a primeira vez que eu tenho assim.. noção que UAU, posso vir a ser artista.”

Ainda no ano de 2005 lançou, juntamente com o irmão e produtor Macaco Simão, a sua primeira maquete “O que Esperas”. Este single passou a fazer parte da lista de músicas do programa radiofónico “Rádio Fazuma” da Antena 3 e entrou na compilação da revista Hip hop nation.

Foi então que, em 2007, e já com algum trabalho e nome reconhecidos, a editora Universal Music Portugal mostra interesse em assinar contrato com Bete.

Será impossível não falarmos sobre teres sido a primeira mulher portuguesa a assinar com uma editora mundial. Foi um marco muito importante e especialmente no Hip-Pop. Novamente, qual foi a sensação?

“Fui a primeira mulher rapper! Na época acho que não tinha essa noção. Depois começaram a sair algumas manchetes com esse título e muitas vezes diziam “a primeira mulher”, “a primeira rapper”. Muitas vezes eu corrigia porque conhecia outras rappers que, na época até já tinham lançado CD’s, álbuns. Então ao mesmo tempo senti um bocado o peso.. muitas vezes as pessoas também não explicavam bem e muitas pessoas dentro do hip-pop diziam “ela não é a primeira”, “a primeira com uma multinacional”… Mas senti também que, ao mesmo tempo foi difícil na época de lidar. Aquela questão de vir de um mundo de música amadora e de termos estado a trabalhar logo assim o teu primeiro contacto é com uma editora grande… Foi uma aprendizagem. E acho que podia ter corrido melhor por ambas as partes e acho que são tudo aprendizagens. Para mim, hoje em dia, sinto que aprendi muito com essa experiência. Acho que de certa forma acabei por contribuir para o Hip-pop. Fazer parte da história.

Em 2008 saiu o seu primeiro e único álbum a solo, “De Igual para Igual”, como resultado do trabalho entre a editora e da participação de Macaco Simão na produção. Deste álbum fazem parte duas das músicas mais conhecidas da rapper, Cala-te e Definição de Amor. Ambas vieram a fazer parte da banda sonora da série televisiva Morangos com Açúcar 6.

“Eu tinha um contrato de 3 álbuns que depois não chegámos a fazer os outros 2 e pronto depois acabei por emigrar, acabei por fazer outras coisas e também, verdade seja dita, eu não gostei  muito de ser artista. Senti que não estava preparada, não gostei de ter exposição… E durante muito tempo quis livrar-me disso. Não quis mais ser conhecida, ou pelo menos ser conhecida daquela forma. Na época o hip-pop ainda era um meio muito agressivo e quando o single sai, o Cala-te, e por causa da letra ser um bocado.. também da minha parte, isso acabou por levar a várias pessoas acharem que estou a falar para elas. Quem é esta que chega aqui e que manda calar a boca. E pronto, então também tive muito ódio de pessoas irem comentar o meu vídeo, de me virem enviar e-mails e pronto… E isto na época afetou-me muito, não estava preparada para este tipo de exposição. E pronto, e também outra coisa que é, o tipo de hip-pop que eu fazia ainda era muito.. não foi bem aceite. Era assim um bocado “Ah isto não é bem hip-pop é R&B”. Eu acho que se fosse hoje em seria um bocado diferente, já há dentro do hip-pop mais variedade. Mas na época ainda era muito fechado e então houve uma data de coisas que eu não… Também eu não fazia quase dinheiro com a música. E isso só me trazia felicidade… (…) antes da música eu já estagiava e trabalhava em eventos e já fazia dinheiro com os eventos, e quando acabei o curso quis investir no meu primeiro carro e por causa da música, a determinada altura, tive que o vender porque a música dava-me tantas despesas, de tanto que investimos de “Ai vamos fazer esta promoção aqui mas não é paga, mas é muito importante” ou “olha vais sair na revista tal” e em todas essas coisas acabamos por gastar. “Temos este concerto que não pagam, pro bono, mas é muito importante apareceres” e depois também tentar conciliar isso com o meu emprego era complicado porque estava sempre a ter que faltar, a tirar férias…Na altura trabalhava ainda em eventos e depois comecei a trabalhar como Web Developer”.

Alguma vez tiveste algum contacto com a política, ou tentaste, através, eventualmente das tuas músicas, ter alguma ação política? Ou sempre foi mais para tentar pôr o que tu sentias, o que pensavas… como é que as tuas músicas entram aqui nesta parte?

“Eu acho que sempre teve um bocado de um conteúdo político, hoje eu consigo ver isso. O Cala-te fala um bocado do machismo, o Selva fala um bocado do como o mundo é, o problema entre ricos e pobres, e tive também outras músicas que não saíram e que também falam sobre isso. O Soldado fala de problemas como a guerra… Eu acho que o Hip-Hop acaba sempre por falar a metade do mundo que nos rodeia. “

Este Dama no Rap, este single que também lançaste, foi também nessa onda, para tentar mostrar que a mulher também pode, a mulher também consegue, a mulher também pode ser rapper?

“Sim, e é interessante que até hoje, a letra continua atual. Sempre que estou com artistas mulheres, muitas das coisas que eu digo, que já falo uma parte da letra, é convidam-nos para gravar e ficamos sempre com medo quando a pessoa diz que o estúdio é em casa, e quando chegamos, “ah, o estúdio é no quarto” diz assim. E pensamos se vir aqui é realmente para gravar, se haverá outra intenção. Ainda são coisas que infelizmente acontecem.”

Ainda há muito esta presença mais masculina, mais machista no hip-hop, e que levam a situações mais desagradáveis. Como é que tu te enquadras, qual é a tua posição nesta questão da mulher não ter o seu lugar, estas questões de género?

Eu acho que mesmo na minha vida hoje em dia, trabalho no mundo da tecnologia, também é idêntico. Ou seja, são meios onde, tanto no hip-hop como na web, há mais homens do que mulheres. Eu acho que isso também vem muito como somos crianças, por exemplo, na tecnologia, tanto como no hip-hop. Vemos mais homens a fazerem, e é normal que, por exemplo, se há mais homens que os pais oferecem computador, e isso, por exemplo, eu que sempre tive talento para a tecnologia, nunca tinha pensado nisso, e a razão de eu não ter ido na escola secundária ou para a faculdade, não ter escolhido esse curso, é porque eu só via homens fazerem. E depois chega uma altura que tu pensas, bem, não vou para aquele curso que só são homens, não me sinto confortável. E eu acho que o hip-hop também é um bocado assim. Até há pouco tempo houve uma discussão porque saiu, eu acho que foi no Observador, uma reportagem com algumas rappers femininas, e os comentários foram muito negativos. Várias rappers femininas foram lá comentar, e não é que as rappers não é que elas falassem apenas da problemática do hip-hop feminino e da discriminação que existe, mas mum reel foi isso que foi destacado. As mulheres ainda são marginalizadas, claro que tinha muitos homens lá a comentarem “mas porquê que então uma mulher vai fazer algo só de homens?” “Se o hip-hop é machista, porquê que uma mulher vai fazer?” E pronto, eu acho que é importante ver mulheres, como existem muitas mulheres em várias áreas, não digo só no hip-hop, o mesmo acontece muito nas empresas tecnológicas. Há uma percentagem de vagas que as empresas tentam que sejam ocupadas por mulheres ou por minorias, para quê? Porque se não houver também esse esforço de tentarmos equilibrar, as novas gerações vão continuar a ser como eu, que não vou para aquele curso porque sou vejo lá homens!

Como é que achas que podemos, neste momento, mudar isso?

Eu acho que podemos mudar se alguns festivais, por exemplo o Primavera Sound, que eu acho que é dos poucos, tentar ter o mesmo número de mulheres a tocar no festival como de homens. Eles [Primavera Sound] tentam, não me lembro qual a percentagem, mas tentam mesmo igualar. E eu acho que isto neste momento é interessante, para criar esse tal equilíbrio que não existe. E claro que nós mulheres podemos dizer, ok, não vou fazer hip-hop e não fazemos, ou podemos fazer à nossa maneira, que é o que fazemos, e essas novas gerações, se calhar vão se identificar conosco, e se calhar no futuro vão existir mais mulheres que se sentem confortáveis a fazer.

Os Morangos com Açúcar tiveram uma banda sonora muito variada e criaram mais do que uma girls band e mais do que uma boys band. Pegando no teu segundo single Definição de Amor que teve também muito sucesso, não sei se terás sentido alguma diferença nesta questão, mas visto que o Cala-te não foi muito bem recebido especialmente pelo público masculino, como é que sentiste a recepção desta música pelo público?

O maior público dos Morangos, por acaso, é um público que até hoje respeita a minha música e gosta, e eu acho que se calhar foi também um lado positivo poder chegar a outro tipo de pessoas que não são necessariamente as pessoas do hip-hop. São essas pessoas que, até hoje, me põem em playlists no Spotify dos Morangos, e de vez em quando tenho pessoas que organizam eventos dos Morangos e dizem “olha, estou a tentar organizar este evento e gostava muito que participasses”, para mim é positivo. Na época, havia uma conotação negativa em participar, em fazer parte dos Morangos, das nossas músicas fazerem parte. Parecia que era uma coisa má. Hoje em dia, para mim é positivo, porque as pessoas que até hoje em dia continuam a ter aquela certa nostalgia, e para mim são das pessoas mais respeitadoras, dizem “olha, marcou-me tanto nesta fase da minha vida”. E para mim isso é positivo.

Dama Bete ainda teve um outro single que também deu que falar, o Selva, com a colaboração dos Terracotta, e que serviu de inspiração para a coleção daquele ano (2009) da estilista Elizabeth Teixeira.

Eu acho que a música, na realidade, é a música que mais me representa e o que eu gostava de ser como artista, mas ao mesmo tempo também não era uma música que pudesse vender. Então, quando eu mostro, “olha, esta é a minha música preferida, das minhas músicas preferidas do álbum” porque eu acho que é aquela que consegue ir buscar as minhas origens africanas, eu acho que essa é a música que representa aquilo que estamos a falar, do que eu via na Sara Tavares. Eu acho que eu consigo tratar o que eu era como artista, só que, ao mesmo tempo, músicas como Cala-te, Definição de Amor ou Dama no Rap, que têm aquele instrumental mais eletrónico, eu como editora, ao mesmo tempo, acho que é o que consegue vender mais. E, apesar dessa música ter sido aquela em que eu fiquei mais orgulhosa, acho que eu fiquei mais orgulhosa não porque era o que eu gostava, por causa dos Terracotta, ou pela letra, que falava de questões políticas e coisas por que estávamos a passar na altura, mas sim por ter alguém a dizer “essa música influenciou a minha coleção de roupa, como estilista, gostava que viesses cantar.” Ok, a música está lá, mas para mim foi bom eu conseguir transmitir algo e alguém ouvir a música e inspirar-se para algo único.”

Foram saindo outros singles ao longo dos anos, até 2015, ano em que Elizabet lança o seu single Fechar a Porta.

O single Fechar a Porta, teve aqui algum significado nesta parte da tua carreira?

Essa fase da minha carreira até foi interessante porque era eu em busca do fazer, ou seja, eu tinha aquele contrato e tinha que apresentar trabalho e tentar lançar os restantes álbuns. O meu irmão emigrou, foi viver para Londres e também já não queria ter nada a ver com música, então tive que conhecer outros artistas, tentar perceber como é que podia conhecer um novo produtor. Então, fazer essa música, o Fechar a Porta com o SP foi uma das pessoas que eu pensei que poderiam vir a ser esse produtor. Também fiz uma música com o Agir e o Agir deu-me alguns instrumentais; ou seja, eu estava à procura de alguém com quem poderia trabalhar, só que ao mesmo tempo eu não queria fugir muito ao selva. Então, quem pode ser essa pessoa? Ir experimentando, gravar com pessoas e eu própria também, ao perceber que não estou a encontrar a pessoa certa para fazer produção comecei a aprender sozinha. A tentar produzir por mim. E foi surpreendente. Lidar com outros artistas, sair da minha bolha, só das pessoas com que eu estava habituada a trabalhar e explorar, trabalhar com outras pessoas. Acho que essa fase, sim, foi importante.

Em 2023, 12 anos desde o Fechar a Porta, Elizabet fez parte do single Guerrilla das Girl Cypher com a Blaya, a Cíntia, a Carla Prata, a Moleka e a Alexia. Foi o reencontro com o mundo da música e com Blaya, com quem gravara músicas no início da carreira de ambas.

Passando para o tempo mais recente, como tu própria já aqui falaste, a altura da tecnologia, que foi uma grande curiosidade tua, uma grande paixão. Começaste a trazer esta parte para a tua vida profissional e a fazer a combinação da música com a tecnologia. Já passaste pelo Brasil, Alemanha, Estados Unidos, Holanda, Bulgária, Arménia. Qual foi o país que mais gostaste?

Foi a Arménia. Eu acho que tem tudo a ver com as pessoas. A minha primeira conferência assim grande foi em Las Vegas e foi logo um choque, porque fui selecionada para ir falar e foi tudo muito rápido. Avisam-nos e num mês temos de tratar do visto para ir para os Estados Unidos fazer a conferência, e ficamos a pensar “o que é que eu vou dizer” e vou ter de falar em inglês, nunca fiz uma conferência, nunca falei nesse contexto em inglês eestava com uns nervos… Depois chegamos lá com jetlag e eu fui logo das primeiras e pronto, mas fiz. Só que aquilo era, vão para as Vegas, para aqueles hotéis… e pronto. Mas ao mesmo tempo conheci lá pessoas, fiz amigas. Estamos num mundo completamente diferente, foi a primeira vez que vi um Tesla! Um rapaz “ah, vocês querem ir ao centro de Las Vegas [é o Strive]?” “Ah, sim.” E nós, os europeus, ele deu-nos boleia, tentámos abrir a porta [do Tesla], “ah, como é que se abre?” E ele, “Tocas aqui” e nós, ok, ok. Senti que aquilo era um mundo completamente diferente, mesmo eu vivendo na Irlanda, na época, era muito diferente. E quando fui a Erevan, as pessoas são muito mais humildes, as coisas que fizemos, foi daquelas conferências em que no final começamos a chorar porque temos que ir embora, e lá eu vou voltar, e dá-me o teu número telefone, e pronto, e somos amigos para sempre. Então, pronto, eu acho que isso é que fez com que eu gostasse mais de Erevan, foi as pessoas que conhecemos. E, assim, para explicar, para ficar de uma forma mais explícita, eu própria também percebi que era aqui a junção entre a tecnologia e a música, mas também não percebi muito bem em que é que consistia propriamente este meu projeto, que eu achei muito interessante, e que de facto vi que tem tido muita aceitação.”

Nessa altura, por volta de 2015, Elizabet já não tinha a música como uma prioridade por esta se ter tornado, como referido acima, um investimento do qual não tinha retorno, tornando-se uma situação incomportável.

(…) Começo a pensar no que é que faço bem,e várias pessoas dizem “que sou muito “és muito boa a fazer sites, nunca reparaste nisso?”, e eu até essa altura nunca tinha reparado, e começo a pensar, sim, secalhar pode ser a minha profissão, e realmente acaba por tornar-se a minha profissão. A determinada altura, as pessoas começam a falar muito de aplicações para iPhone, da iOS, e eu decidi tirar um curso e quando vou tirar esse curso, no final, temos que fazer uma aplicação, e a minha aplicação, pensei, “olha, vou fazer uma cassete, que é mais ou menos o formato de um iPhone, e essa cassete vai servir para gravar freestyles, eu meto o play, toca um loop de hip-hop, e meto o rec, e gravo o meu freestyle”, então a minha aplicação ia ser essa, chamada Cassette Tape, e eu fiz a aplicação. Os professores até gostaram, só que eu não gostei muito de como ficou, achei que ficou muito amadora, em termos de design, de código… não gostei, e também não gostei muito de fazer código para iOS, não gostei da linguagem e, na realidade, a minha linguagem de programação era o JavaScript, e eu comecei depois a pensar, “secalhar podia voltar a fazer aquele projeto, mas com a linguagem que eu sei, em JavaScript”. Comecei a pesquisar e era muito difícil, porque o JavaScript é usado no browser, só que na época, só o Google Chrome é que dava para gravar a voz no browser, e eu comecei a tentar criar o projeto, e quando o consigo fazer, acabo de criar, gravo a voz no browser, faço a play, ou seja, a aplicação funciona, e descubro que há um site do Google, que é o Google Labs, em que posso meter aquela aplicação como um experimento, porque era algo que ainda não funcionava em todos os browsers, então era ainda muito experimental e meti lá. Depois convidaram-me para o Google I.O., que é um evento que todos os anos a Google faz, mas a versão do Google I.O. Dublin, porque eu estava a viver em Dublin, e lá vou eu apresentar a minha cacete. Pronto, eu não acho nada especial, só que depois as pessoas começaram a tomar atenção, ok, isto usa tal Web Audio API, isto é inovador. E a partir daí começam-me a convidar para falar em meetups, naqueles eventos assim mais locais, ligados à tecnologia que eu estava a usar, que era o React. Depois acabei por ir melhorando cada vez mais este projeto, e quando vou a esta conferência em Las Vegas, que é a conferência do grupo Meta, o Facebook e o React faz parte da Meta, eu tenho a cassete, e quando eu meto a cassete com o loop, as pessoas pensavam que eu ia rimar por cima, e eu não rimei porque fiquei com vergonha, porque só tinha a letra em português, e pensei, não vou agora rimar em português. Porque ninguém vai perceber. Só que depois convidaram-me para uma outra conferência, o We are Amsterdam e aí fiz um freestyle em português. E como era na Europa já tinha muitas pessoas, portugueses, brasileiros “ei, eu percebi o que tu disseste” “Isso foi espetacular”. E pronto, a partir daí as pessoas acharam piada eu mostrar aquela cassete, explicar como é que eu fazia o código e fazer a rima por cima. Então eu depois comecei a pensar “também, eu faço em português, mas ninguém percebe. E se eu gravar uma música em inglês?!”. Gravei a música [Fork This], lancei-a no dia das mulheres, fiz um vídeo e a partir daí começaram a convidar-me para ir falar, para explicar como é que eu fiz a cassete e já fazer a tal cena em inglês que era essa tal música.”

E sentiste maior aceitação?

Sim, as pessoas são um bocado diferentes e sinto que, por exemplo, desde o convite a Las Vegas, os outros convites começaram a surgir e depois é um meio diferente, as pessoas convivem e têm mesmo interesse. Quando eu acabo de falar de uma talk as pessoas vêm falar comigo “uau, gostei, como é que fizeste?” ou “olha aquela parte, eu gostava de ajudar e melhorar” e também fazemos amigos para a vida.

Há alguém com quem tu ainda gostasses de trabalhar seja na parte da tecnologia ou, eventualmente, na parte da música?

“Eu neste momento estou a tentar gravar um EP, vai ser uma cassete. Pronto, já repararam que eu tenho uma fixação por cassetes. Porque ao longo deste tempo e por também acontecer este projeto da Cassete Tape e eu sempre gostar tanto de cassetes, depois descobri uma cassete que eu gravei quando era muito nova onde tenho lá a voz das minhas primeiras rimas.. e eu achei interessante, “olha vou lançar uma cassete que tem de começar com isto”. E pronto, claro que tenho as minhas artistas com quem gostava de participar, uma dessas artistas seria a Nancy Vieira, que também conheci no Musidanças, acompanho a música dela desde aí, e achei que encaixava numa música como se tivesse mesmo de ser a voz dela, não sei se ela há de aceitar, mas era uma daquelas artistas. Outra artista assim de sonho, que infelizmente já não será possível que seria a Sara, mais… A garota não. Recentemente conheci-a e ela disse “vamos fazer um som”, mas não falámos mais nisso, mas gosto muito do trabalho dela. É das artistas que neste momento, para mim, ocupa o lugar que nós rappers deveríamos ocupar. É como se ela estivesse a fazer esse trabalho de dizer, de combater politicamente… as letras dela são muito fortes e acho que ela está a fazer muito bem esse papel e para mim é a minha rapper de eleição. Mesmo ela não sendo rapper, para mim ela é a rapper. E pronto, claro que há muitas outras pessoas, pronto. Também tenho esta coisa né, sou muito feminista e gostava de participar com mulheres e convidar mulheres. Será um EP todo feito por mulheres, até a mistura, em princípio a produção está a cargo da Mena, também uma artista de Aveiro. A mistura há partida será be my wings, também tive o prazer de a conhecer, gostei muito.”

Última questão, mas não menos importante, como é que tu vês o teu futuro, quem é que vês, qual é a Elizabet que vês no teu futuro e como é que te sentes em relação a isso?

Neste momento, finalmente acho que cheguei a uma fase da minha vida que me sinto bem, que consigo finalmente perceber que podemos ser artistas multifacetados e que antigamente era muito difícil de.. parece que tínhamos de só ser uma coisa e hoje já há muitos artistas que são atores, são cantores, empresários… E eu hoje em dia sinto isso, que eu quero lançar este EP por mim, meter fora e sem qualquer pressão e continuar com o meu trabalho, que gosto, e cenas gigs da tecnologia, e durante muito tempo era uma batalha e parecia que tinha que escolher. E agora finalmente consigo perceber que não tenho que escolher, faço simplesmente e pronto e é aí que eu quero estar! E secalhar hão de vir muitos projetos outras coisas, eu comecei a aprender guitarra por mim, toco guitarra de forma amadora e agora pensei “já me sentia velha para ir para uma escola” mas inscrevi-me e disse “olha, também não vou morrer sem ter tentado ser boa a tocar”. E é isso.

Tive o privilégio e o maior gosto de entrevistar a Elizabet. O que acabaram de ler foi uma tentativa de vos dar a conhecer a sua história, contar-vos as histórias que ela me contou.

Aproveito para deixar a nota aos saudosistas que no próximo dia 28 de novembro, numa celebração dos 20 anos dos Morangos com Açúcar na Meo Arena, a Elizabet (ou Dama Bete) marcará presença como convidada!

Deixo-vos um pouco da Elizabet e do seu trabalho.

https://www.damabete.com/?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAabJ_CfQEGEZAMywvjpp-5XPwMuVHZwRssO2x6w80_XlC6FBev6KbDG4VEs_aem_wHZz5T1ADw96K6SyBZlcFg

https://linktr.ee/damabete?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaYUrbHLZ7Pt2sEeZY2B4L2_Ij9GjYygNRKSm-4ai7MDm9cy3aJVPFztcZA_aem_oANoBGitHX65KcEb1WDC6g

Este artigo é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Catarina Navalho

Editado por: Marta Neves

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