Desafiando a lógica do Estado-nação, que historicamente estruturou a organização política global em torno de fronteiras territoriais, políticas e identitárias bem delimitadas, o cosmopolitismo propõe a ideia de uma humanidade unificada que transcenda barreiras nacionais, culturais e políticas, composta por cidadãos mundiais. Será uma utopia inatingível, como muitos afirmam, ou será possível realizar um mundo sem fronteiras?

O cosmopolitismo assenta em diferentes aspetos centrais: igualdade moral universal, no sentido em que todos os seres humanos têm o mesmo valor intrínseco; solidariedade global, isto é, a ideia de que os deveres éticos não se limitam às fronteiras nacionais; unidade na diversidade, em valorização das culturas nacionais e locais dentro de um quadro global.
Immanuel Kant, na sua obra, A Paz Perpétua, imagina uma federação global de Estados baseada no respeito pelos direitos humanos e na cooperação pacífica. Esta ideia reforça o pensamento cosmopolita e entra diretamente em confronto com o princípio de soberania sobre o qual se construiu o Sistema Internacional em vigor, em que os Estados, como entidades independentes, detêm autoridade exclusiva sobre os seus territórios. Com isto em mente, a integração de sistemas políticos e culturais diversificados dentro de uma governança global una, sem violar a soberania dos Estados ou gerar um domínio cultural de uma parte sobre a outra, torna-se um desafio imenso.
Atualmente, dificilmente se consideraria com otimismo a materialização de um projeto com a magnitude necessária para alcançar uma comunidade humana unida politicamente, moralmente e culturalmente, como potenciais impactos devastadores na economia e infraestrutura de algumas regiões devido às migrações em massa resultantes do fosso entre países ricos e pobres. Também, tendo em conta que fronteiras nacionais não são apenas barreiras físicas, perder-se-iam mecanismos de controlo destinados à proteção dos Estados contra ameaças externas, como terrorismo ou tráfico humano.
Ora, colocam-se as seguintes questões: Como se concretizaria, atentando à coexistência hipotética de sistemas políticos, religiosos e culturais divergentes, a criação de uma governança global unificada capaz de responder perante todos os cidadãos do mundo, sendo que neste existem vastos grupos de pessoas com ideologias, costumes e crenças incompatíveis social e politicamente com o ideal cosmopolita? Como se harmonizariam sistemas tão distintos sem impor a hegemonia de um modelo societal específico? Além disso, não se exige apenas respeito pela diversidade para uma coexistência pacífica e justa, mas também a capacidade efetiva de resolver conflitos de interesses que, à escala cosmopolita, se tornam exponencialmente mais complexos.
Entre os defensores de ideais cosmopolitas destaca-se Martha Nussbaum, cuja proposta de “cidadania global” contraria a noção de que as lealdades do cidadão devem estar ancoradas na nação. Para Nussbaum, devem existir orientações na educação e na ética para fomentar um sentimento de pertença universal, para que os indivíduos possam vir a reconhecer-se amplamente como parte de uma comunidade global sem fronteiras. Segundo a filósofa, esta ideia não invalida os laços locais ou nacionais, antes convida a transcender essas barreiras em defesa da justiça global e da responsabilização coletiva.
Por outro lado, críticos como Michael Walzer apontam para a inquebrável tensão entre o universalismo e o pluralismo cultural. Walzer defende que comunidades locais e Estados-nação estruturam a identidade do indivíduo e criam uma noção sólida de pertença, pelo que não podem ser facilmente substituídas por noções abstratas de cidadania global. Também, o autor alerta para a imposição de valores e prioridades de determinadas culturas, tendencialmente ocidentais, sob a bandeira de um ideal cosmopolita para disfarçar o que se traduz numa hegemonia cultural pintada de universalismo.
Afinal, apesar da retórica cosmopolita que certos atores globais como os Estados Unidos da América têm utilizado, quando se observam intervenções militares, do Iraque ao Afeganistão, justificadas em nome da democracia e dos direitos humanos, ignorando as realidades, identidades e necessidades locais, acabando por desestabilizar regiões inteiras, o senso comum indica frequentemente uma agenda expansionista profundamente mascarada por visões cosmopolitas que, na prática, são inseparáveis dos interesses dos Estados Unidos.
Nas mãos de grandes potências e blocos regionais, o cosmopolitismo é distorcido e transformado numa arma de domínio cultural e político. Se o cosmopolitismo pode ser mais do que uma utopia, terá de ser solto de amarras imperialistas disfarçadas e da hipocrisia institucional. Logo, para construir um modelo global que respeite verdadeiramente as diversidades e que se afaste da imposição de valores hegemónicos, permitindo que a unidade se construa de baixo para cima, e não de cima para baixo, é necessário um esforço genuíno eficiente e eficazmente projetado à escala global capaz de resistir à força gravitacional dos grandes poderes sobre a política internacional.
Em suma, o cosmopolitismo continua a ser, em grande medida, um ideal nebuloso que, se bem intencionado, parece ser mais uma fantasia distante do que uma realidade palpável. As grandes potências, longe de promoverem a unidade global, frequentemente usurpam os princípios cosmopolitas para expandir as suas próprias agendas. Na realidade, se o mundo for um dia unificado, provavelmente será através de bilhetes de avião baratos e Wi-Fi global.
Este artigo é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Pedro Cruz
Editado por: Matilde Bruno


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