A arte do inacabado

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Há algo na imperfeição que nos atrai. Não apenas naquela que é trabalhada e polida até se transformar numa obra de arte, mas naquela que nos é imposta pelo acaso, pela fatalidade ou pelo simples abandono. É nessa imperfeição, no inacabado, que reside uma beleza única; uma beleza que não tenta ser, mas que simplesmente é.

Pensemos em Michelangelo, cujas esculturas inacabadas – como os “Prisioneiros” – revelam figuras humanas aprisionadas em pedra, como se lutassem para emergir. Ao vê-las, percebemos que o inacabado não representa um fracasso; antes, uma declaração de vida.

As figuras, ainda que imperfeitas, transmitem a mensagem de potencial, de esforço, de tudo aquilo que não se completou.

Fonte: Galleria dell’Accademia

A última obra de Franz Kafka, “O Castelo”, é um romance interrompido pelo autor antes da sua morte. O texto termina repentinamente, sem sentença, deixando o leitor suspenso, perdido na incerteza. No entanto, talvez essa falta de conclusão seja a própria mensagem do livro.

No ramo da música, a “Sinfonia Inacabada”, de Franz Schubert, é uma obra-prima que resiste ao tempo, precisamente porque nos deixa a imaginar o que poderia ter sido, a preencher o vazio com as nossas próprias ideias, emoções e narrativas.

Se estas obras nos tocam, talvez seja porque o inacabado reflete a própria condição humana.

Nós, tal como os “Prisioneiros” de Michelangelo, lutamos para encontrar sentido num mundo que não nos dá garantias. Somos projetos inacabados – sempre a meio caminho, sempre com algo por fazer, sempre com algo por alcançar.

Todavia, será que essa incompletude é, de facto, um defeito? Ou será, como nas obras de arte inacabadas, um dos nossos maiores encantos?

A vida é, afinal, um mosaico fragmentado de momentos. Tentamos constantemente dar-lhe forma, atribuir-lhe um propósito, como se existisse uma versão final, perfeita, à nossa espera.

Mas talvez a perfeição seja uma miragem. Talvez, o que torne a vida bela seja precisamente aquilo que não conseguimos concluir – as relações que permanecem por resolver, os sonhos que não se realizam, as perguntas que ficam sem resposta.

O inacabado obriga-nos a refletir. É um convite a completar mentalmente aquilo que nos é mostrado. Quando olhamos para a pedra bruta de Michelangelo ou lemos o final interrompido de Kafka, somos forçados a imaginar o que poderia ter sido. O vazio é, assim, um espaço a ser preenchido.

As obras incompletas transcendem o seu estado, tendo a capacidade de nos tocar de formas que as obras concluídas, por vezes, não conseguem. No inacabado vemos, não só o esforço do criador, mas também o eco da nossa própria fragilidade.

Quiçá a maior lição que a arte do inacabado nos oferece seja a aceitação. Aceitar que não precisamos de respostas definitivas, de finais perfeitos, para viver de forma plena. Aceitar que o nosso valor não reside apenas naquilo que completamos, mas também naquilo que começamos e que, por qualquer razão, fica por terminar.

Talvez seja por isso que o inacabado nos fascina tanto: porque vemos nele o nosso reflexo.

A vida nunca será uma sinfonia completa, um romance fechado, uma escultura polida até ao último detalhe mas, tal como as grandes obras, não precisa de o ser. É nas lacunas, nas falhas e nos espaços vazios que encontramos a nossa humanidade.

No fundo, o significado não reside no epílogo, mas no ato de criar, tentar e persistir. Se conseguirmos aceitar que nunca seremos inteiros, talvez possamos, finalmente, encontrar a beleza de sermos eternos projetos.

Como afirmou Leonardo da Vinci, “A arte nunca está terminada, apenas abandonada”, e talvez a maior obra que possamos criar seja a de aprender a amar a arte do inacabado.

Este artigo é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Rita Luís

Editado por: Pedro Cruz

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