Trump, a Guerra na Ucrânia e os Desafios à Segurança Europeia

A União Europeia, assim como todo o mundo ocidental, enfrentam hoje diversas ameaças externas como nunca antes enfrentaram. Após o término da Segunda Guerra Mundial e até à queda da ex-URSS, o mundo experienciou uma ordem mundial marcada pela bipolaridade — entre capitalistas e comunistas — estando as linhas divisórias entre ambos bastante definida.

Após a desintegração da União Soviética, em 1991, o mundo viria a vivenciar uma ordem mundial unipolar, marcada pela hegemonia dos Estados Unidos da América nos variados setores – económico, militar, tecnológico. Apesar disso (e porque uma ordem mundial não é eterna), a ascensão da China como potência mundial veio desafiar diretamente a hegemonia que os EUA até então vinham exercendo. Atualmente, há uma competição entre os EUA, a China e potências de menor dimensão (regionais), caminhando a ordem mundial para um sistema multipolar.

Apesar de todas as mudanças que ocorreram em matéria de ordem mundial ao longo dos últimos quase 80 anos, uma coisa manteve-se: o facto da União Europeia, por mais esforços que tenha empregado, não conseguiu afirmar-se como uma potência capaz de fazer frente ao bloco autocrático. Durante todo este tempo a Europa viveu sob o “guarda-chuva” americano, dependendo dos EUA para a sua segurança e defesa. Contudo, é legítimo afirmar que as relações transatlânticas poderão entrar num estado crítico e delicado com a tomada de posse de Donald Trump no dia 20 de janeiro do corrente. Com o seu regresso à Casa Branca existe um perigo (quase) iminente e genuíno de que o apoio que os Estados Unidos têm providenciado à Europa diminua substancialmente ou ainda pior, seja suspendido. A aliar-se a isto, caso a administração de Trump decida cessar o apoio militar a Kiev as consequências vão revelar-se desastrosas e profundas, tanto para a Ucrânia como para a Europa (estando a capacidade europeia de defender-se contra ameaças externas em risco).

No decurso das últimas décadas a União Europeia tem deixado o investimento na defesa para segundo plano, julgando que o seu inimigo (quase) existencial tinha mudado de abordagem relativamente aos seus objetivos geoestratégicos e à ordem mundial estabelecida. A “wake-up call” para uma clara mudança de pensamento no que toca ao investimento na defesa e armamento deveria ter sido quando a Rússia invadiu e anexou a Crimeia em 2014. Se tal não bastasse, e permitindo à Rússia que preparasse a sua economia e capacidade militar, a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 deveria, certamente, ter sido a “final wake-up call”, criando uma melhor dinâmica por detrás do esforço da UE para tornar-se, finalmente, num ator credível e estável de segurança da região. Isto não aconteceu, e uma vez mais, a UE decidiu (e poderá dizer-se que preferiu) confiar nos EUA para assumir a liderança numa guerra europeia.

De momento, a opção de depender dos EUA para assegurar a segurança e defesa da Europa está em risco de desaparecer. Os líderes europeus e a União Europeia devem agir rápida e decisivamente rumo a um caminho de estratégia unificada de maneira a garantir a paz e estabilidade do continente. Donald Trump já por diversas vezes expressou a sua vontade de suspender o apoio militar que tem dado à Ucrânia e por isso a Europa deve preparar-se para a possibilidade de ter de ser a única parte responsável em resolver um conflito europeu.

Um risco ainda maior é o de Trump, assim que tomar posse, tentar chegar a um acordo com a Rússia para acabar com a guerra na Ucrânia (Trump em vários comícios que fez ao longo da campanha eleitoral afirmou que iria acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas). Se tal acontecer, é provável que Trump venha a sofrer imensa pressão interna para que tal acordo seja alcançado o mais rápido possível, dando a Putin uma vantagem nas negociações e dando azo a que qualquer acordo que possa advir de tais conversações não integre proteções adequadas para a futura segurança e estabilidade ucraniana (e europeia).

Dito isto, a Europa não tem outra alternativa viável sem ser gerir a sua própria segurança e defesa, reforçando as suas capacidades de defesa (algo que tem de ser feito rapidamente). Não obstante, a atual conjuntura política e económica europeia, tornam este projeto muito ambicioso, pois requer não só uma economia forte e robusta como uma liderança política, algo que neste momento não existe na UE, faltando imensa vontade política. A Alemanha viu o seu governo cair da noite para o dia pelo que os políticos alemães, nos próximos meses, vão estar preocupados com eleições antecipadas (marcadas para dia 23 de fevereiro) e o consequente processo de formação de um governo; a França encontra-se mergulhada numa instabilidade política, com o Presidente Emmanuel Macron a ter dificuldades em nomear um Primeiro-Ministro que consiga uma maioria estável; e as relações euro-britânicas continuam, no mínimo, inquietantes.

Embora muitos países europeus pareçam incapazes de serem os líderes da construção de uma política de defesa e segurança comum, outros membros parecem prontos para assumir tal posição, como a Polónia, os países do Báltico e os países Nórdicos. É preciso compreender que não priorizar esforços de defesa e segurança agora, poderá (muito provavelmente) levar a uma contínua agressão russa.

A (quase) obsessão de Trump em acabar com a guerra em 24 horas, é um perigo extremo tanto para a Ucrânia como para a Europa. Europeus — incluindo ucranianos — não podem ser deixados de lado nas conversações de paz que determinarão a sua futura estabilidade e segurança. Para começar, a UE precisa de garantir que as negociações de paz não comecem, sem antes haver fortes e efetivas garantias de segurança para a Ucrânia. Sem a certeza que a Ucrânia continua protegida e apoiada, um possível cessar-fogo revelar-se-á muito pior do que a ideia da continuação da guerra, ao mesmo tempo que um acordo inadequado condenará não só a Ucrânia, mas também todo o continente europeu.

A juntar-se a este facto, é preciso ter em conta que a guerra não tem corrido bem para a Ucrânia — contando com uma ofensiva falhada em 2023 e uma ofensiva com pouquíssimos ganhos territoriais na região de Kursk em Agosto do ano passado. Dito isto, caso a Ucrânia seja forçada a negociar, vai fazê-lo de uma posição de fraqueza militar. Ademais, propostas comuns para um possível cessar-fogo incluem a interrupção de atividades militares ao longo da linha da frente, o que levaria, inevitavelmente, a uma crise política e militar na Ucrânia, que a Rússia poderia explorar para conseguir os seus objetivos de guerra.

Caso houvesse uma interrupção de atividades militares nas linhas da frente, poderíamos incorrer o risco de termos o mesmo desfecho que obtivemos no período entre 2014 (invasão e anexação da Crimeia) e 2022 (invasão de larga escala na Ucrânia): a Rússia teria tempo para recuperar o seu exército e economia, tornar-se mais resistente e invadir a Ucrânia de novo. A única diferença é que a Ucrânia não seria capaz de responder como respondeu outrora, e muito provavelmente, a UE não teria capacidade de apoiar a Ucrânia de forma incondicional. É então imperativo que a UE não apenas tenha lugar nas negociações de paz como também tenha preponderância nas mesmas, de modo a proteger os interesses ucranianos (que podem ser assumidos como europeus).

Caso a administração de Trump queira perseguir a estratégia descrita em cima, mesmo tendo em conta todas as falhas apontadas, a responsabilidade de tirar o melhor partido dessa má situação recai sob a Ucrânia e a UE, pelo que devem insistir que as negociações não começam sem que ambas estejam na mesa de negociação. Ter americanos e russos a decidir o futuro da Ucrânia (e da Europa) é um cenário impensável (recordemos, por exemplo, o Acordo de Munique de 1938, em que diplomatas checoslovacos não participaram nas discussões que ditaram o seu futuro). Além do mais, é essencial que um possível acordo contenha fortes cláusulas vinculativas, que a Rússia não possa violar com facilidade. O Tratado de Minsk (2014) e o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança (1994) são excelentes exemplos representativos do perigo que é confiar na Rússia para cumprir a sua palavra. A falta de fortes cláusulas vinculativas aumentaria significativamente as probabilidades da Rússia menosprezar o acordo, interpretando-o como uma pausa operacional do cenário de guerra para reconstruir o seu exército e economia.

Para evitar que isto aconteça a UE tem de forçar a sua entrada na mesa de negociação, mas isto só pode acontecer se for capaz de ultrapassar as suas divisões internas. A verdade é que alguns governos de alguns países europeus (leia-se, em grande medida, Hungria, Eslováquia e se a extrema-direita conseguir formar governo, a Áustria) defendem abertamente um apaziguamento em favor da Rússia, enquanto outros, como a Alemanha, Espanha, Grécia e Itália, têm dado a entender que não se importariam e não obstruiriam um acordo liderado pelos EUA de modo a acabar com o conflito russo-ucraniano rapidamente. Felizmente, existem ainda Estados que estão dispostos a ter uma posição firme em relação à Ucrânia. Alguns desses países são a França, o Reino Unido, os países do Báltico e  os países do Nórdico. Torna-se então patente que para a Ucrânia sair vitoriosa, e consequentemente a Europa, é necessário que os Estados europeus estejam de acordo e dispostos a ajudar a Ucrânia naquilo que for preciso.

Resta-nos, contudo, responder à questão de como é que pudemos criar garantias estáveis e duradouras de segurança para a Ucrânia e para a Europa. Uma opção poderia ser continuar a aumentar o apoio financeiro-militar à Ucrânia e, acima de tudo, levantar restrições no que diz respeito ao uso de material militar. Equipar a Ucrânia com avançadas capacidades defensivas e ofensivas, permitiria à Ucrânia conseguir lograr no campo de batalha e ao mesmo tempo dissuadir (mesmo que minimamente) a agressão russa. Porém, para que tal aconteça é preciso compromisso económico e político, algo que falta em muitos líderes ocidentais. A Alemanha, por exemplo, devia fazer algo que já deveria ter feito há muito tempo: enviar mísseis TAURUS de longo alcance e levantar restrições para que a Ucrânia possa atacar diretamente alvos militares dentro de território russo, usando dessa maneira, material fornecido pela Alemanha. É verdade que, como a Alemanha apregoa, isto poderia levar à escalada do conflito, todavia, a Rússia não tem capacidade, quer económica quer militar, para um conflito direito com a UE (e a NATO), independentemente do quão bem (ou mal) preparadas estejam estas últimas.

Uma última opção, servindo como expoente máximo garantido de que a Rússia cumpre um futuro acordo de cessar-fogo, é o envio de forças militares para território ucraniano, quer sejam da NATO ou de um conjunto de países da UE (ideia esta que tem ganho imensa atenção nos últimos tempos). Não podendo confiar nos EUA para um apoio financeiro-militar contínuo e estável à Ucrânia, tendo em conta todo o elenco da administração de Trump, esta tarefa tem de recair obrigatoriamente sob a UE. Apesar de ser a Europa a ter de defender o seu continente (algo que é até estranho de se dizer em voz alta), tal abordagem teria vários benefícios, como por exemplo: mostraria a Donald Trump o compromisso Europeu em prol da defesa da (sua própria) segurança e estabilidade regional; mostraria uma Europa unida e coesa ao resto do mundo; e forçaria a Rússia a participar nas negociações de paz. Convém ter em conta que o envio de forças militares não seria com o objetivo de estas servirem como um mecanismo de defesa do território ucraniano, mas antes como arma de dissuasão contra uma possível invasão de larga escala pela Rússia — esta última teria consciência que uma nova invasão poderia significar uma guerra total com a Europa e a NATO.

As tropas ficariam “estacionadas” na parte leste do território ucraniano, longe das linhas da frente, em contínuo estado de prontidão militar. A componente aérea das forças militares europeias seria de extrema importância, pelo que era imperativo a instalação de sistemas de defesa aérea avançados, como mísseis de curto e longo alcance, para proteger as tropas e as infraestruturas vitais contra ataques aéreos; e radares de vigilância e sistemas de comando para detectar e neutralizar quaisquer ameaças aéreas. Além do mais, seriam precisas aeronaves de combate e de apoio logístico, sempre prontas para levantar voo rapidamente, de modo a garantir a superioridade aérea e a capacidade de resposta imediata a qualquer agressão.

Apesar da Europa correr o risco de executar esta operação sozinha, convém mencionar que o apoio americano seria de extrema importância (e a verdade é que, caso a Europa se comprometesse com tal operação, os EUA, muito provavelmente, mostrar-se-iam disponíveis para qualquer auxílio). A Europa contribuiria com a mão de obra militar, incluindo unidades móveis e de intervenção rápida e também forças de elite — que estão habituadas às condições (adversas) e terreno da Ucrânia — e os EUA cooperavam com a sua capacidade de intelligence, habilidades de reconhecimento de terreno e vigilância (para lá das linhas da frente), não precisando de “boots on the ground”, podendo operar estes sistemas a milhares de quilómetros das linhas de combate. O facto de não haver tropas americanas em território ucraniano, poderia também agradar bastante Donald Trump, que não corria o risco de experienciar desagrado do povo americano em casa.

De notar que, ao contrário das missões de manutenção da paz da ONU, esta mega operação precisaria de autoridade para responder a qualquer ataque que a Rússia elaborasse. Não obstante, a sua principal tarefa seria dissuadir as forças russas, tendo também em conta, que a Rússia faria de tudo para testar os limites deste possível arranjo em território ucraniano.

Por último, é de extrema importância entender que um acordo de cessar-fogo é extremamente improvável de acontecer em 2025, mas, caso aconteça, a UE tem de estar preparada para conseguir estar ao nível das grandes potências e não ser esquecida. A UE mais do que dizer em voz alta, tem de ter vontade de guiar o rumo do seu próprio continente e lutar por uma ordem regional estável e duradoura. Tem de enfrentar o perigo russo como algo existencial, e fazer de tudo para impôr-se como o lado mais forte e não deixar o expansionismo e imperialismo russo ditar o futuro da região. Para que tal aconteça, as divisões internas têm de desaparecer e todos os europeus (e não apenas os líderes políticos) têm de ter o mesmo objetivo em mente: uma Europa democrática, segura, estável e livre de perigos autocráticos.

Este artigo é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Carriço Oliveira.

Editado por: Marta Neves.

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