O Dilema Ucraniano: Guerra, Paz, Sobrevivência

Fez, no passado dia 5 de dezembro, 30 anos da celebração do Memorando de Budapeste, em que a Ucrânia, a Bielorússia e o Cazaquistão aceitaram desfazer-se do material nuclear que havia em seu território, em troca de proteção dos EUA, da França, do Reino Unido, da Rússia e da China. A verdade é que três décadas depois, apesar do material nuclear não ter pertencido à Ucrânia, mas sim à antiga URSS, muitos acham que o Memorando foi um erro e que era preferível a Ucrânia ter ficado com algum tipo de material nuclear – como ferramenta de dissuasão – do que contar com os países acima referidos para a sua segurança nacional.

Fonte: BankInfoSecurity

Apesar disso, a realidade é que a Ucrânia encontra-se numa guerra fatídica e implacável, e pensar no passado (e no que poderia ter sido diferente) pode revelar-se devastador para o futuro da sua soberania. A Ucrânia passa agora por um momento difícil e desafiador na guerra. Depois da ofensiva (falhada) no verão de 2023, passado um ano, Kiev tentou uma vez mais romper pela região de Kursk, mas não conseguiu adquirir uma vantagem significativa nas linhas da frente de combate. Ademais, a Rússia tem conseguido mais capital humano para a sua máquina de guerra e conta já com o apoio de forças armadas estrangeiras (leia-se forças especiais Norte Coreanas) a combater em território ucraniano, o que lhe permitiu ter ganhos territoriais consideráveis,  em especial na região de Donetsk.

A aliar-se às condições precárias nas linhas de combate, juntam-se os ataques russos às infraestruturas de energia ucranianas, que poderão ter consequências catastróficas para a Ucrânia (e para a Europa) com a chegada do inverno, privando o povo ucraniano de aquecimento, água e energia. Isto pode levar a uma nova vaga de refugiados que poderão fugir para a Europa durante os próximos meses.

O aliado fundamental da Ucrânia durante a totalidade da guerra tem sido os EUA e a elite política ucraniana está ciente disto. Aquando da tentativa, sem sucesso, no verão de 2023, as autoridades ucranianas interpretaram os comentários negativos dos media americanos como um possível sinal de redução de apoios. Tendo em conta a total polarização em que os EUA se encontram no momento, a Ucrânia reconheceu que, independentemente do futuro do apoio americano, teria de obter assistência de ambos os Republicanos e Democratas. Esta ambivalência da política externa ucraniana é visível, por exemplo, quando em 2023 Zelensky teve um almoço de trabalho com o CEO da Fox News, Lachlan Murdoch; ou quando teve um telefonema com Trump em 2021 (quando os Republicanos já não se encontravam na Casa Branca).

Se não fosse o elevado nível de adaptação da diplomacia ucraniana, a sua política externa caracterizada por traços de Realpolitik e um entendimento profundo da política americana, não seria possível obter tanto apoio económico-militar como tem recebido (tendo em conta que para os projetos de lei de apoio passarem no Congresso era imperativo ter o apoio dos Republicanos). Apesar do contínuo apoio americano ao esforço de guerra ucraniano, estes últimos percebem que não vão conseguir vencer a guerra apenas com gigantes quantidades de assistência militar, se as restrições quanto ao seu uso forem tão rígidas quanto têm sido.

A chegada de Donald Trump à Casa Branca pode tornar a situação de combate ucraniana ainda mais frágil e instável e a Ucrânia tem todas as razões para preocupar-se com uma segunda presidência de Trump. Afinal, Trump prometeu acabar com a guerra em apenas um dia e por diversas vezes criticou a quantidade de assistência militar que os EUA têm providenciado à Ucrânia (assim como muitos republicanos hardliners).

Contudo, Trump não tem muita margem de manobra com Putin e não sabemos se este último estará sequer preparado para negociações. A aliar-se a isto está o facto de não sabermos como Trump acabará com a guerra em 24 horas. Alguns especialistas têm algumas teses de como isto poderá acontecer: dizem que poderá persuadir Putin a negociar, todavia não conseguem precisar como isto poderá suceder-se; outros apontam para Elon Musk ou Viktor Orbán serem pontes para conversas iniciais. No entanto, mesmo que tais conversas começassem, não é possível deduzir como acabariam.

Mesmo se a diplomacia arrojada da administração de Trump conseguisse estabelecer conversas com Putin, a realidade é que as condições no terreno não estão propícias para um acordo de cessar-fogo (para ambos lados). Com o começo do inverno, a previsão é de que nenhum dos lados consiga grandes ganhos territoriais, ficando num impasse até à primavera. Porém, caso Trump ameaçe cortar (ou de facto corte) o apoio económico-militar à Ucrânia, Putin vai estar mais motivado para continuar a lutar e não cessar a agressão, o que dificulta ainda mais um possível acordo de cessar-fogo.

Dito isto, um corte no apoio americano à Ucrânia não significa um acordo de cessar-fogo. Trump precisa, primeiro, de acelerar e aumentar o apoio à Ucrânia para que esta possa contestar a atual ofensiva russa no Donbass (uma das regiões mais contestadas), dessa maneira criando um impasse nas linhas da frente de combate. Havendo um bloqueio nas linhas da frente e um total compromisso americano à Ucrânia, Putin poderia ser forçado a tentar chegar a um acordo (tendo também em conta o crescente esforço de guerra russo, que pode jogar a favor de um acordo de cessar-fogo).

De seguida, Zelensky também teria de ser persuadido a sentar-se nas mesas de negociação. Zelensky (e o povo ucraniano) não vai simplesmente abrir mão dos territórios perdidos e ocupados pelas forças armadas russas. Para tal sacrifício ser feito, Trump (e a Europa) teriam de oferecer algo que fosse suficientemente benéfico para a Ucrânia. A oferenda tem de ser a entrada imediata na NATO. Para além de ser uma das únicas coisas que Zelensky estaria disposto a aceitar em troca de concessões territoriais para a Rússia (cerca de ⅕ do território ucraniano), seria uma das únicas formas de dissuadir um ataque futuro russo (à posteriori de uma assinatura de um acordo de cessar-fogo).

O Memorando de Budapeste de 1994 (referido no início) é talvez o melhor exemplo de como tratados e acordos não funcionam com a Rússia. Tivesse a Ucrânia mantido algum tipo de material nuclear para fins de dissuasão, quiçá a Rússia não teria anexado a Crimeia em 2014 e começado uma invasão de larga escala em 2022. Dito isto, caso haja um acordo de cessar-fogo sem a oferta imediata de adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte da Ucrânia, corremos o risco de auxiliar a Rússia, dando-lhe tempo para descansar e revitalizar o seu exército e economia (como aconteceu no período entre 2014 e 2022), procedendo uma invasão igual à que aconteceu à de 2022.

Apesar disto, surgem essencialmente três teorias que vão contra a ideia da entrada imediata da Ucrânia na NATO. Uma delas refere que é pouco provável que todos os Estados membros da NATO (leia-se, principalmente, o Primeiro Ministro Húngaro, Viktor Orbán e o Primeiro Ministro Eslovaco, Robert Fico) estivessem dispostos à entrada imediata da Ucrânia, mostrando-se algo relutantes ou mesmo receosos. Isto de facto poderia revelar-se problemático, pelo que o ator-chave – Donald Trump – teria de mostrar um apoio inequívoco a tal ideia, de modo a persuadir aqueles que se mostram mais hesitantes.

Outra premissa que vai contra a ideia da entrada imediata da Ucrânia na NATO surge através de alguns céticos que acham que Putin não vai deixar que a Ucrânia se junte à Aliança. Esta tese, apesar de tudo,  apresenta algumas falhas. Putin não invadiu a Ucrânia pelo possível “perigo” que tal adesão poderia representar à segurança nacional russa. Em 2022, a ideia da Ucrânia juntar-se à NATO era mínima e muitos em Kiev, Moscovo, Washington e Bruxelas tinham conhecimento disso. A invasão da Ucrânia pela Federação Russa deu-se por causa do sonho imperialista de Putin: unir ucranianos e russos numa só nação, derrubar o regime pró-Ocidente ucraniano, desmilitarizar o país, e trazer a Ucrânia (novamente) para a sua esfera de influência. Putin sabia que, ao invadir a Ucrânia, a possibilidade de esta alinhar-se ainda mais com o Ocidente era tremenda e que o Ocidente não iria ficar “de braços cruzados”, pelo que uma invasão não seria de todo a melhor forma de impossibilitar a entrada da Ucrânia na NATO.

A última teoria (mais pessimista) diz que a entrada imediata (ou não) da Ucrânia na NATO poderia desencadear a Terceira Guerra Mundial. Porém, a NATO é uma aliança defensiva. Nunca atacou a Rússia e nunca vai atacar (interprete-se aqui que, segundo aqueles que acreditam nesta teoria, a Terceira Guerra Mundial poderia começar pelo lado russo como também pelo lado ucraniano). Todavia, a Rússia, depois de três anos de um conflito devastador, não teria qualquer interesse em escalar um conflito com a NATO, tendo de enfrentar a maior e mais bem preparada aliança militar do mundo. Isto acontece porque, como referido anteriormente, a máquina de guerra russa está completamente desgastada. No que concerne às forças militares, têm sofrido imensas baixas – mais de 78.000 soldados mortos e entre 400.000 e 600.000 baixas, se contarmos com os soldados feridos (à altura em que este artigo é escrito) – e a economia russa está também bastante debilitada pelo que Putin não está minimamente interessado em enfrentar a NATO num conflito militar direto. A aliar-se a isto, Vladimir Putin prefere ter um lugar na História como aquele que conseguiu expandir as fronteiras do “Império Russo”, não tendo o mínimo interesse em ameaçar uma guerra total com a NATO, ou bloquear a entrada da Ucrânia na NATO.

É óbvio que Zelensky nunca iria aceitar (a longo prazo) a anexação dos territórios perdidos ou mesmo reconhecer formalmente as anexações russas. Contudo, a possibilidade de entrar imediatamente na NATO, poderia levá-lo a aceitar um acordo em que ficasse explícito que Kiev aceitava perseguir uma possível unificação apenas através de mecanismos pacíficos. A Alemanha Ocidental (no pós Segunda Guerra Mundial) é um exemplo perfeito de estudo de caso: aquando da divisão da Alemanha, a República Federal Alemã não reconheceu a República Democrática Alemã como Estado legítimo, afirmando que representava a totalidade da Alemanha. Em 1955, ao entrar na NATO comprometeu-se, com esta última e os EUA, a procurar a reunificação apenas por meios pacíficos.

Em suma, cumprir um plano como o que referi ao longo do artigo seria muito difícil. Saber equilibrar todos os interesses poderia revelar-se uma tarefa de extrema dificuldade, mas é a única solução para uma paz prolongada na Europa de Leste (e consequentemente, no continente europeu). Uma guerra interminável ou a capitulação ucraniana em favor de Putin representa um perigo extremo para a segurança e estabilidade da ordem europeia.

Este artigo é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Carriço Oliveira

Editado por: Pedro Cruz

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