Carta de alforria, um documento através do qual um proprietário de escravos concedia liberdade a um escravizado seu. A pessoa em questão, ao ser libertada, recebia comummente o nome de “negro forro”, derivado de alforria. O uso desta carta ajudou a acabar formalmente com a escravidão, uma vez que assinada, libertava uma pessoa de um dos maiores flagelos da nossa história.
Hoje em dia, não há mais necessidade do uso desse documento, já que a escravidão acabou, mas ainda há gente que é punida à nascença pela cor da sua pele e pelo estatuto dos seus pais, pessoas que fazem muito e ganham pouco, pessoas a quem a vida não estendeu a mão.
Foi esse o caso de João Ricardo Azevedo Colaço, nascido na periferia de Cascais, cujo Bairro da Cruz Vermelha foi o seu berço e as ruas foram a sua escola. Não tinha muitas posses na infância e nunca assinaram um documento para lhe dar uma vida melhor. Viveu e cresceu no gueto, apaixonou-se pela música e mais tarde com o nome de “Plutonio” começou a crescer no mundo do Hip-Hop. No dia 8 de novembro de 2024, lançou “Carta de Alforria”, o seu 4º álbum a solo, e está hoje no pedestal de um dos rappers mais conceituados em Portugal. Como disse anteriormente, ninguém o ajudou, ninguém se preocupou, ninguém lhe escreveu uma Carta de Alforria. Por esse motivo, agarrou num papel e numa caneta e escreveu-a ele próprio.

O álbum começa com um tema muito pessoal, uma introdução que explica ao público a premissa de todo o disco e no qual o rapper desabafa sobre a sua vida no País das Maravilhas, terra que lhe ensinou que o verdadeiro conceito de liberdade é mais complexo do que o que vinha nos livros de história. Uma música intensa e sentimental, com vários monólogos, onde talvez o artista tenha achado que o flow não se adequaria à mensagem que queria passar, pois o destino é incerto e tem para nós reservado algo que transcende os nossos planos, mas o passado é concreto e leva com ele um significado que não podemos descartar “porque um homem pode não saber para onde é que ele vai, mas tem de saber donde é que ele vem”.
Seguida a introdução, Plutonio acorda numa Casa Melhor, bem melhor aliás, mas como a vida não se resume a posses e um homem precisa de alguém para o acompanhar, segue em busca do espaço Interestelar de alguém (talvez para não acabar sozinho numa Sala de Audiências). Durante a sua caminhada nem tudo foi fácil e os esforços do passado compensaram o presente, lição que nos relembra que por vezes temos de “correr como um escravo para caminhar Como 1 Rei”. Rei esse que, no seu quarto de hotel, sozinho, às 6am em Paris, reflete sobre a sua vontade de não querer uma vida vazia de emoções e conquistas, mesmo havendo pessoas de fora que, insistentemente, se Perguntam Como é que alguém como ele, que já conquistou tanta coisa, pode não estar ainda satisfeito, mas só quem já quebrou o coração em 1000 Bocados pode entender que nada é para sempre, e se nada é para sempre, há sempre algo pelo qual vale a pena lutar. Afinal de contas, a vida é uma Montanha que um homem escala eternamente. De repente, vem um ou outro momento de lucidez, um Deja Vu que o confunde por achar que já o sentiu mas nunca o viveu, uma brisa que o lembra que no fim de uma paixão, espreita sempre um Deserto.
No fundo, para ser feliz é preciso unificar peças que parecem distantes e fazer um Mapa Cor de Rosa para provar que não é a lotaria social que impede alguém de se destacar feito Ouro sobre Azul. A felicidade e a bonança pertencem a toda a gente a determinada altura, é importante respeitar o tempo que elas demoram a chegar e a ir embora e compreender os solavancos que o destino enfrenta, pois se o amor é inevitável, o sofrimento é facultativo e o mais importante é que acabe em Sessenta e Nove.
Há preocupações que uma pessoa não deve ter e é melhor que se concentre com a matemática básica, saiba que o “drama a gente subtrai, enquanto a grana Multiplica” e que não podemos mudar a essência de quem somos apenas por haver quem nos chame de FDP. Este álbum avança, Tal e Qual começou, com sons mais românticos, em que o artista em questão volta aos seus momentos de reflexão com a companhia da sua mente e um ou outro cigarro, mas também o que é Menos um Nite para quem não tem o seu amor por perto.
Plutonio segue com a música Luxemburgo e governa a sua vida num trono como Rei Salomão. Com vitórias e derrotas se faz o caminho, e por vezes temos de provar alguns Dissabores, porém, a vida é de cada um e a liberdade é tudo o que nos resta, se a soubermos aproveitar conseguimos sentir, olhar e viver como outros não conseguem. E embora tenha dito no início que Plutonio escreveu este álbum para se libertar a si próprio, após ouvi-lo tenho a plena sensação de que foi ele que nos libertou, assinando a nossa Carta de Alforria.
Escrito por: Marco Morgado
Editado por: Matilde Bruno


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