Onde acaba a utopia?

Escrito por

Não acaba.

A utopia é a nossa história. A utopia é a evolução da humanidade em todos os aspetos. Tudo o que temos à nossa volta é produto de uma ideia — um pensamento que, pela maioria, era considerado utópico.

Quando atravessávamos oceanos em navios, era utópico atravessá-los em máquinas voadoras feitas de metal. Quando conquistámos o céu e começamos a voar em aviões, era utópico voar para fora deste mundo e ir ver como eram as coisas lá fora. Contudo, a humanidade transformou-as não só em realidade, mas também em coisas banais.

Penso que talvez seja esse o problema. Ao banalizarmos a utopia, não a apreciamos. Não damos a devida atenção ao que esta fez por nós e acabamos por lhe atribuir significados negativos.

A palavra utopia é usada por muitos como um sinónimo do impossível, algo pelo qual não vale a pena lutar, pois vai resultar no irremediável falhanço total. Acho engraçado, e até irónico, que aqueles que usam esta palavra desta forma depreciativa são os mesmos que consideravam utópico mulheres poderem votar, ou o fim da escravatura, ou o acesso universal e gratuito à saúde.

Criada esta tipologia de pessoas, surge outro problema: este tipo de pessoas. Não nos deixam avançar, são obcecados com o passado e, sendo impossível voltar a este, tentam parar o relógio e congelar o tempo infinitamente de forma a mantermo-nos no lugar.

To be conservative, then, is to prefer the familiar to the unknown, to prefer the tried to the untried, fact to mystery, the actual to the possible, the limited to the unbounded, the near to the distant, the sufficient to the superabundant, the convenient to the perfect, present laughter to utopian bliss.” — Michael Oakeshott.

“(…) to prefer the familiar to the unknown” — a humanidade é, atualmente, a mais avançada de sempre. A mais sofisticada, a mais rica e eficiente. Claro, a pobreza continua a existir, as guerras continuam a existir e vivemos na sociedade mundial com mais problemas de saúde mental de sempre. O que há para não preferir esta realidade a qualquer outra que seja melhor?

“(…) fact to mystery” — não são os mistérios apenas factos que ainda não foram provados?

“(…) present laughter to utopian bliss” — deve ser ensurdecedora a “present laughter” das pessoas que não têm comida para pôr em cima da mesa para alimentar as suas famílias. Coitadas e inocentes, que trabalham dias inteiros com aquele “utopian bliss” de que as coisas vão, um dia, melhorar.

Podia continuar a lista de factos, totalmente exagerados só para provar o meu ponto de vista, mas ficaria aqui, neste sítio, eternamente — e não é isso, no fundo, que Michael Oakeshott pretendia?

Contudo, além das críticas, tenho de admitir que também eu prefiro o near to the distant”, só mesmo porque sou preguiçoso.

O discurso de Oakeshott, de preferir o conhecido ao desconhecido, o status quo à mudança, poderia fazer sentido se vivêssemos no mundo perfeito. No entanto, como nunca vamos viver no mundo perfeito, o discurso dele está intemporalmente errado.

Não faz mal nunca chegarmos ao perfeito, é esse o objetivo — conseguirmos identificar os problemas, resolvermo-los, surgirem novos problemas e repetir o processo. Foi assim que chegámos até aqui.

“A utopia está no horizonte. Avanço dois passos; ela recua dois passos. Avanço dez passos, e o horizonte recua outros dez. Por mais que ande, nunca lá chegarei. Para que serve então a utopia? Para isto: para continuarmos a andar.” — Eduardo Galeano.

A palavra utopia encerra em si mesma a sua própria infinitude.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Miguel Gomes Mendes

Editado por: Pedro Cruz

Uma resposta a “Onde acaba a utopia?”

  1. Muito bem escrito, gostei bastante

    Gostar

Deixe um comentário