“A mesa, um lugar onde ” vamos falar de Teatro

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“A mesa, um lugar onde” esteve no TMJB, em Almada, no passado fim-de-semana, dias 12 e 13 de outubro. Este teatro da Companhia de Teatro de Braga, dirigido por Rui Madeira e interpretado por Valentina Picciau e Rogério Boane, veio surpreender e inspirar a plateia.

Fonte: TMJB

           

A mesa é um objeto que conhece muito de nós e muito da vida do ser humano, no geral. Conhece os nossos sentimentos, os pensamentos que verbalizamos aos outros e os que só transmitimos com o olhar, conhece as nossas rotinas e os nossos sabores preferidos. Conhece tudo isto de nós (e mais um pouco), por ser o centro dessas conversas, lágrimas e gargalhadas, e por ser a base desses sabores. É à volta da mesa que nos comunicamos, verbal e não verbalmente, aos outros e a nós próprios.

Com um conceito fora do comum e do expectável, esta é uma peça de teatro que desafia as nossas crenças e que aborda a comunicação no seu estado mais puro: a comunicação não-verbal. As duas personagens provêm de países cultural e idiomaticamente muito diferentes, o que, para nós humanos, funciona como um desafio para nos entendermos uns aos outros. Este teatro prova-nos que, afinal de contas, até é simples, se nos desprendermos de preconceitos e formos ao encontro do mais interessante noutra pessoa, a sua essência. As duas personagens comunicam, durante a peça, de acordo com a sua essência: com as suas expressões “pintadas” no rosto, no olhar e no sorriso, com os seus sentimentos e com a partilha de memórias que fizeram nas suas vidas.

É uma obra de arte que suscita, em quem a vê, reflexão, no que toca às nossas relações interpessoais. Refletimos a beleza que pode ter a comunicação com quem não fala a mesma língua que nós, mas que no fundo fala, por partilharmos um facto que nos une a todos, independentemente da linha geográfica que nos separa: o facto de sermos seres humanos, de termos uma alma. Essa alma não precisa de ser traduzida para palavras, para a conhecermos e darmos a conhecer.

O espetáculo faz, ainda, reflexões e críticas a temas sociais, como o racismo e a xenofobia, preconceitos que, muitas vezes, definem a nossa comunicação enquanto humanos, uns com os outros, e que prendem os membros da sociedade de perceberem o quão temos em comum.

O “final” desta peça deixa tudo mais mágico, funcionando de uma forma totalmente diferente da que estamos habituados. Após a atuação dos atores, as pessoas não batem palmas e vão embora. A mesa onde a cena decorre passa a funcionar como espaço de convívio com pessoas da plateia, onde podem ter, também, experiências gastronómicas. A mesa tem azeitonas, pão e vinho, deixando tudo mais acolhedor e convidativo.

Conversei, à mesa, com os dois atores: Valentina, natural da Sardenha de Itália, e Rogério, natural de Moçambique.

CB: “O que é que este teatro transmite, essencialmente?”

VP: “Acho que, nos dias de hoje, esta peça é muito importante, pelo valor da união. Somos duas pessoas de lugares do mundo completamente diferente, mas que se encontram para contar histórias que, no fundo, são as mesmas. […] Dois locais tão diferentes têm, no fundo, tradições tão iguais e maneiras tão iguais.”

RB: “O público revê-se essencialmente nas memórias abordadas, assuntos da vida que estão presentes em tudo, por exemplo na nossa relação com o outro.”

CB: “Qual foi o maior desafio, na construção desta peça?”

VP e RB: [Risos] “Não houve, nada!”

VP: “Funcionou também como uma descoberta pessoal sobre o outro, ficámos a saber tanta coisa um do outro!”

RB: “Foi um prazer. Houve muito trabalho, mas com muito prazer.”

Conversei, também, com o diretor da Companhia de Teatro de Braga e encenador desta peça, Rui Madeira, que me falou sobre este espetáculo e sobre o surgimento do mesmo.

RM: “A companhia tem 45 anos e trabalhamos muito fora de Portugal. Trabalhamos na Europa, Ásia, América do Sul e África, pois faço parte de uma estrutura, onde estão representantes de 34 países, a Eurasia Theater Association. Viajamos muito em espetáculo […] e existe sempre o problema da língua, em países estrangeiros, […] por isso legendamos sempre os espetáculos. Valorizamos muito o corpo como elemento estrutural da comunicação e implicamos os atores nessa qualidade da comunicação. Nos espetáculos que fazemos fora de Portugal com legendas, acontece que os espectadores (estrangeiros) ou ficam presos às legendas, ou veem os atores. Temos […] a possibilidade de ter, nesta peça, um ator de Moçambique e uma atriz da Sardenha italiana, […] que tem uma língua própria, uma vivência própria, experiências teatrais diferentes, com capacidade de dançar, cantar e representar. Tínhamos, assim, as condições reunidas para fazer um espetáculo que representasse esta realidade europeia e mundial: o constante viajar das pessoas, esta transumância que vivemos […].

Muitas vezes não reconhecemos uma história, no outro, com a qual nos identificamos, o que gera um confronto. Se não reconhecermos o outro, não nos reconhecemos a nós próprios, e esse é um problema do nosso tempo, é por isso que se dão problemas como o racismo e a xenofobia. […] Esta peça visa o confronto artístico entre duas pessoas que têm histórias e memórias identitárias diferentes, mas que, no fundo, vão revelar que temos todos a mesma matriz.”

Tive, além disso, a oportunidade de falar com várias pessoas da plateia, e ao longo da conversa fui percebendo que essa reflexão estava em mim e nos outros. Apercebi-me de que as pessoas comunicavam mais intensamente, ao falar do teatro, com a linguagem corporal do que com a linguagem verbal. Recolhi os testemunhos de duas pessoas.

Comecei por falar com o Sr. Alexandre Neto, que me falou de emoções e de um tema que o tocou, particularmente, abordado nesta peça: a vida e a morte.

CB: “Qual é a aprendizagem principal que adquiriu nesta peça?”

AN: “São os encontros e desencontros das pessoas e a forma como, no final, as pessoas se conseguem entender, apesar das suas diferenças. Aborda a diversidade, e a importância das memórias que ficam connosco, no final da vida.”

CB: “Consegui perceber que as suas palavras contêm emoção. O que é que sentiu ao ver esta peça?

NA: “Agressão, afeto,…  […] as emoções que sentimos no teatro, na vida e na morte, que faz parte da vida.”

CB: “Acha que, de certa forma, o tabu que é falar da morte é atenuado nesta peça?”

NA: “Esta peça aborda o tema sem tabus. Se atenua o tabu em quem o vê, depende do recetor, mas considero que sim, […] desmistifica a morte. O teatro tem isto, quando saímos não somos os mesmos de quando entrámos, essa é a magia. O tema da morte foi especial para mim, pois recentemente passei pela experiência de perder uma pessoa muito próxima.”

Conversei, depois, com a Sra. Susana Guedes de Amorim.

SA: “O que mais me cativou, neste teatro, foi a ideia que é transmitida da comunicação entre diferentes povos […] e culturas. Penso que funciona, também, como uma lição que vivemos, em que há muito ódio direcionado ao outro.”

CB: “Pensa, então, que esta peça aproxima as pessoas?”

SA: “Aproxima, muito. A mensagem passa perfeitamente e de forma comovente. Há uma linguagem universal. As personagens falam línguas completamente diferentes, no entanto, entendem-se bem.”

SA acrescentou, ainda: “Este final é uma alegria, esta ideia de convidar o público para a mesa é muito bonita.”

“A mesa, um lugar onde” está ainda em espetáculos pelo país durante este ano. O convite está aberto a quem quiser, também, enriquecer a sua cultura e simplificar a sua comunicação com o outro.

Este artigo é de total responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Cristina Barradas

Editado por: Pedro Cruz

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