Jorge Cruz, pelos olhos d’ ”esta geração”

Escrito por

Fica a conhecer Jorge Cruz, vocalista dos já extintos Diabo na Cruz, agora focado na carreira a solo.

“Queres saber como eu sou, como é esta geração?”. Assim começa “Ganhar o Dia”, uma das canções de Diabo na Cruz. Como é que é (o vocalista), quem escreve conhece bem (pelo menos o trabalho). Esta geração? Quem escreve (às vezes) preferia não saber. Poucas são as pessoas desta (nossa) geração que sabem apreciar o que é feito na música portuguesa. Muito menos quando se fala em rock. Ainda menos quando se juntam os dois. 

Quase no fim de “Luzia”, outra das canções da banda, ouve-se “[…] eu trabalho noite e dia / Pelo roque popular”. Quem escreve não tem absolutamente nenhuma dúvida disso. Infelizmente, nem em 2019, quando acabou, e muito menos em 2008, quando começou, tinham os Diabo na Cruz chegado aos ouvidos de quem escreve. Felizmente, a internet existe (uma coisa boa desta geração) e temos viagens ao tempo gratuitas (para compensar o preço dos concertos atualmente). Uns earbuds nos ouvidos e estamos em 2015, na primeira fila, a cantar “Ai é tão lindo, ai é tão lindo”, com a multidão. E depois Jorge Cruz sorri e diz-nos “vocês é que são!”.

Mesmo que metade do nome da banda seja “sangue do seu sangue”, não só de Diabo na Cruz é feito Jorge Cruz. Aliás, mal seria. Em “Transumante”, diz-se “Há uma casa p’ronde vou/ E um sonho de onde venho”. “Transumante” sabe a casa, conforto. Fogueira numa noite de verão, lareira numa manhã de inverno. Às vezes, depois de tanto sonhar, também é preciso descer à terra. Ir para casa. “Transumante” já não é a euforia da primeira fila de um concerto lotado. “Transumante” é aquele amigo que pega na guitarra, senta-se no tapete fofinho do nosso quarto e fica uma tarde inteira a cantar as músicas que gostamos mais. Às vezes, o que mais precisamos e não sabiamos.

Esta conversa foi um conhecer de uma (outra) geração, uma viagem no tempo e um regresso a casa, tudo ao mesmo tempo.

Fotografia de Joana Linda.

Como se apresentaria para alguém que não o conhece?

Eu faço canções, já desde os anos 90. Tive vários grupos. Interesso-me especialmente pela cultura portuguesa, pela língua portuguesa. Utilizo a matéria-prima da música tradicional portuguesa, mas adaptado à realidade dos tempos do século XXI. Inicialmente não sabia bem que ia ser assim. Havia uma outra música que puxava a isso, porque os meus pais educaram-me a ouvir muita música portuguesa. Sérgio Godinho, Trovante, Zeca Afonso, Vitorino, Fausto. E, portanto, isso também estava lá. Mas os meus gostos como adolescente eram outros. Na minha idade de universidade, é que eu me apercebi. Até porque estava rodeado de um ambiente altamente marcado pela cultura anglo-saxónica. As bandas todas cantavam em inglês, imitavam as bandas lá de fora. E comecei a achar que, se calhar, não acreditava nisso. E acreditava num caminho que tivesse a ver com a cultura portuguesa. E comecei a desbravar caminho por aí.

O legado no “Roque Popular”

Não é só o nome da banda que é “sangue do seu sangue”. Também a ideia de Diabo na Cruz nasce em Jorge Cruz. Por sorte, encontrou as pessoas certas, aquelas que respiram a cultura portuguesa da mesma forma que ele (deve ser equivalente à sensação de encontrar alguém da Geração Z que de facto goste de Diabo na Cruz).

Diabo na Cruz, 2018 (Fotografia de Joana Linda).

Qual era o seu objetivo com os Diabo na Cruz?

Eu queria pôr em prática ideias que já tinha tentado algumas vezes, mas que de certo modo ali criaram-se as condições para que se calhar elas pudessem vingar pela primeira vez. Eram ideias muito pouco populares… como estávamos a falar, na vossa geração [esta sonoridade portuguesa é algo pouco popular entre a maioria dos jovens] … na minha geração também era. E depois aqui conheci uma série de pessoas que também, para quem também era muito importante cantar em português. Formei primeiro um power trio, tipo Super-Ego, com o Bernardo Barata e o João Pinheiro, na bateria e baixo, mas em que a ideia era só a música ser tradicional. E depois andámos a ensaiar, assim, uns seis ou oito meses, aquilo parecia um prelúdio final, mas eu sentia que ele tinha o potencial de chegar a mais gente, se ficasse mais colorido e… se houvesse mais vozes… então juntou-se uns teclados e queria que tivesse cordas portuguesas e na altura conhecia o B Fachada e ele entrou, e arranjámos um teclista, que foi o João Gil, e fizemos o “Virou!” [primeiro álbum].

“Os Loucos Estão Certos”, com mais de 1 milhão de plays no Spotify, faz parte deste primeiro álbum.

Quem são os “loucos” das músicas do Diabo?

Os loucos são os pioneiros dos loucos em medidas que se fazem a terreno. É muito definidor. Tinha a ver com, no fundo, ir contra a corrente. E os loucos eram um bocado aqueles a quem ninguém dava razão. A quem ninguém queria ouvir. Aqueles que parecem tão errados, tão loucos. É aquela ideia de… Se tu achas uma coisa, mas o mundo todo acha o contrário, não achas que é o mundo que está errado. Achas que tu é que provavelmente estás errado. E aqui é invertido. Às vezes acusam-te de ser louco. Mas tu sabes que dentro de ti não estás. E que um dia as pessoas vão perceber. E era isso que, em particular, aquela música ia fazer. Todo o disco “Virou!” foi para anunciar isso. Que as coisas vão mudar e que aquilo vai ser a música do futuro.

E é incrível como se calhar o ato mais notório que Diabo na Cruz teve em 11 anos foi acabar. O que é bastante chocante para quem tem lá 11 anos a trabalhar. O que é chocante, e surpreendente porque tantas bandas acabam e de repente o escândalo que foi aquela banda acabar. Mas é mesmo assim. Muitas bandas acabaram e a música delas perdura.

Diabo na Cruz em concerto (Fonte: Jorge Fernandes Produções).

O último álbum da banda foi lançado em 2018 e chama-se “Lebre”.

Tem muitas interpretações, mas eu gosto da interpretação da lebre desportiva. No atletismo, uma corrida de 10 mil metros, normalmente, para estabelecer o ritmo da corrida, aparecem uns atletas à frente que parecem que podem ganhar aquilo, mas basicamente vão desistir a meio para os outros ganharem. Ficam na frente… Há sempre dois ou três atletas na frente a tentar estabelecer o ritmo que depois vão abdicar para que os principais ganhem.

E deve ter a ver com a história da lebre e da tartaruga. A lebre corre muito, mas depois quem acaba por ganhar é a tartaruga. Isso existia nos livrinhos que os pais vos leram quando eram pequeninos. Pronto, e tinha muito a ver com a cultura portuguesa e a ideia de que era preciso abrir caminho para que gerações mais novas viessem a fazer música com a música tradicional portuguesa, modernizada e que, pronto, nós estamos a abrir caminho para essas pessoas depois chegarem e fazerem ainda mais.

Mas ficam as boas recordações:

São 11 anos de Diabo… 11 anos… Sem dúvida nenhuma, [ficam] muitos momentos especiais. Talvez [o mais especial] no Coliseu, quando eu já estava com problemas de saúde auditiva e não sabia quanto mais tempo é que ia conseguir avançar. E tive que cantar pela primeira vez a balada, que foi uma música que fiz para o meu filho. Eu comecei a ficar emocionado, não conseguia cantar e as pessoas todas cantaram a música.

Jorge Cruz, agora “Transumante”

“Transumante” é o nome do trabalho mais recente de Jorge Cruz. Transumante é o rebanho que migra para as montanhas no verão e para a planície no inverno. Com o artista é mais ou menos igual: migra do ritmo frenético das tours, para pequenas salas, de banda a uma singela guitarra, de um coro a uma única voz. De protegido para vulnerável. Mas aqui é uma migração definitiva. 

Capa de Transumante (Fotografia de Joana Linda).

Este é o terceiro de três trabalhos do artista. Mais ou menos como o “Star Wars”: primeiro o terceiro, depois o segundo, depois o primeiro.

Só um ano antes de começar a gravar é que fiz aquelas músicas. Mas estava noutros processos que acabaram por influenciar chegar ali. O “Transumante” é o terceiro álbum de uma trilogia. Eu vou fazer agora o segundo, estou a começar a trabalhar no segundo e o primeiro já está feito. O “Transumante” foi o terceiro, foi o primeiro a sair. Foi um bocado a vida que levou a isso. Compus o primeiro, estava feito e eu comecei a achar que não fazia sentido sair. Veio a pandemia, essa coisa que interrompeu toda a gente. Então comecei a preparar este segundo. E é nas ideias deste segundo que surgiu o Transumante. Depois eu decidi, não, eu vou ter que fazer este primeiro. Então fiz primeiro o terceiro, agora estou a fazer o segundo e o primeiro já está feito, vou gravá-lo um dia.

Jorge Cruz em concerto no Teatro Maria Matos, em abril (Fotografia de Vera Marmelo).

Qual é a diferença de estar em palco com os Diabo e a solo?

Em Diabo sentia-me mais confortável porque tinha uma dimensão física muito grande. E isso foi uma coisa que eu encontrei num concerto em Guimarães, no primeiro ano que estávamos a dar concertos. Nos primeiros concertos ainda estávamos ali a tocar as músicas o melhor que conseguíamos, assim, meios parados. E depois a coisa explodiu em Guimarães. E eu percebi um bocado o que é que a banda ia ser em termos de energia de palco ao vivo. E era muito mais catártico e fácil fazer isso, porque embora fosse muito intenso e às vezes cansativo e exaustivo,  em termos de agarrar o que é para fazer, entrar no palco e fazer, era mais fácil entender o que era para acontecer.

Estar com uma viola sentada a tocar músicas muito solenemente é uma coisa um bocadinho mais difícil para mim, desafiante. Mas também só fiz quatro vezes até agora. Já tinha feito quando era mais novo. Algumas. Mas sem esta coisa de estar a ser tão ouvido […] chega-se a ser muito mais vulnerável. Mas por outro lado, se calhar a força que eu sentia fisicamente com o Diabo, com o poder da música, sinto agora com o poder da palavra. E isso vem-me de dentro e é uma coisa que eu gosto muito de usar e sentir.

Outros êxitos, a mesma pena

“Dia de Folga”, de Ana Moura tem mão de Jorge Cruz. Mais recentemente, “Maré de Sorte”, de Teresinha Landeiro.

É mais difícil escrever para si ou para o outro?

Para mim. Talvez a razão pela qual é mais fácil escrever para outra pessoa, é o ego. Acho que o ego fica mais de fora. Estamos a servir alguém. É mais fácil servir alguém do que servirmos a nós próprios. As inseguranças não falam tão alto, se calhar. Depois é super interessante, tu estás a tentar conhecer-me a mim, eu estou a tentar conhecer-te a ti. E se eu quiser conhecer-te a ti, faço-te mais perguntas, tento te perceber, e gosto de ouvir, gosto de perceber como é que o outro… portanto não é demasiado bizarro para mim tentar servir esse universo. Escrever, sou muito exigente na escrita, com qualquer coisa que vá fazer, mas apesar de tudo é mais fácil, normalmente quando escrevo para outras pessoas, as coisas normalmente são mais pop, é mais fácil de escrever isso do que escrever o que eu escrevo para mim, que é… é todo um desafio, uma narrativa, que demora muito tempo para alcançar para mim.

No futuro, podemos esperar mais vídeos como o que viste acima: as canções do mais recente álbum, “à viola e voz”. Quanto ao próximo, embora seja o foco atual do artista, ainda não será lançado este ano. 

Fotografia de capa por Martim Torres

Escrito por: Marta Ricardo (com o auxílio de Nuno Montez).

Editado por: Joana Matos

[Nota da redatora] Um agradecimento especial ao Nuno Montez, que, embora não faça parte da equipa do jornal, prontamente ajudou com as perguntas e com a revisão do texto final, para além de ter estado presente no momento da entrevista. Sem ele, esta entrevista não teria existido.

Deixe um comentário