Na passada sexta-feira (17/05), em plena Assembleia da República, no decorrer do debate setorial, aquando da discussão entre os deputados sobre a construção do novo aeroporto, o deputado e líder do partido Chega proferiu (em oratória de tasca) que “O aeroporto de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos, os turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”, o que provocou alguma polémica no parlamento e fora deste, com acusações de discurso xenófobo e pedidos ao Presidente da Assembleia, Aguiar-Branco por repercussões a este tipo de discurso. Não pretendo com este artigo discutir a decisão da segunda figura do Estado português nem o próprio deputado André Ventura e as suas palavras infelizes: pretendo apenas dar razão a Platão, partindo deste acontecimento. Portanto, e fornecendo mais algum contexto antes de chegar ao filósofo, face ao que André Ventura disse e à não existência de consequências pelo Presidente da Assembleia, a chefe da bancada do Partido Socialista, Alexandra Leitão, questionou Aguiar-Branco perguntando “se uma determinada bancada disser que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa também pode”, ao que o presidente da Assembleia respondeu que pode, estando a liberdade de expressão “constitucionalmente consagrada”. Aguiar-Branco argumentou ainda que no regimento da Assembleia da República a injúria e difamação são abordadas quando relativas a outro deputado e que a constituição não proíbe expressões individuais de fascismo ou racismo.
Estando dado o contexto, é importante voltarmos uns meros vinte e um séculos atrás e realmente perceber que, quando em relação ao mal do relativismo, Platão refere que todo o homem irá perdoar a sua malvadez se não faz senão aquilo que os descendentes de deuses fizeram, (referindo-se aos professores, pais e relacionando a este caso, Políticos) está tudo dito. Quando a casa da democracia portuguesa profere e normaliza este tipo de discurso, e prioriza a liberdade de expressão em relação a qualquer bem-comum, torna-se expectável que nas ruas e nas conversas comuns entre os cidadãos haja este tipo de discurso e, consequentemente, haja um aumento de crimes de ódio. Tendo tanto sido dito, permitam-me dissecar, começando pela ideia de Platão e relacionando-a com outras do filósofo, os políticos são a reflexão da sociedade. Por isso questiona-se: se este é o comportamento dos políticos, o que é que se pode esperar da sociedade? A degenerescência de um qualquer regime não vem de fora, começa sim quando os governantes se corrompem, e num regime corrompido quando aquilo que é transmitido (com um enfoque talvez exagerado da comunicação social) à população são casos e mais casos de corrupção, discursos de políticos eleitos de cariz racista, haverá uma clara reflexão no comportamento dos cidadãos. Porque quando os governantes são corruptos, talvez, em comparação, não seja assim tão mau copiar num exame, ultrapassar pela direita, não declarar x fatura e, quando um deputado chama ao povo turco de preguiçoso, não é assim tão mau dizer qualquer que seja a minha opinião sobre este ou aquele grupo, ou não contratar x pessoa por ser de determinada etnia ou pura e simplesmente cometer um crime de ódio, (relativamente a esta última afirmação já entro em mais detalhes). O certo é que o comportamento degenerado do corpo político é a origem da degenerescência de um regime e da sua população, tanto que num regime degenerado todos se vendem porque a moralidade das pessoas não difere da dos políticos, e quando tal se verifica há uma relativização e consequente normalização do mal.
Relativamente à questão do aumento de crimes de ódio segundo dados da agência Lusa, os crimes de ódio em Portugal subiram 38% em 2023 em relação ao ano anterior. Quanto à relação entre estes crimes e partidos extremistas, neste caso de extrema-direita, é estudada e conhecida (deixo abaixo dois links de trabalhos académicos que suportam esta correlação). Quando um deputado em 2020 se refere a uma deputada de origem Bissau-guineense e sugere que seria melhor que fosse devolvida ao seu país, e quando o mesmo deputado diz em 2024 que os turcos são um povo preguiçoso, tendo a última situação ocorrido na Assembleia da República ,é claro que, no ano de 2020, uma parada organizada num ritual que em muito se assemelha ao da organização Ku Klux Klan, se manifesta protestando contra um “racismo anti-nacional” à frente da associação SOS Racismo, e que em 2024 um grupo de imigrantes tem a sua casa invadida e são agredidos por um grupo organizado com pressupostos racistas e xenófobos. Há uma correlação entre um discurso extremista e xenófobo político e ações deste género. A sociedade reflete a classe política.
Portanto, não é propriamente Aguiar-Branco que está incorreto. Talvez não se deva tanto olhar ao homem, mas antes ao regimento da Assembleia da República que acaba por transmitir a ideia de que a injúria a um deputado, por omissão da outra opção, é mais grave que a injúria a outro povo, ou raça, ou etnia, e talvez este seja o problema. O excessivo individualismo, fruto do pensamento de outros filósofos, e sendo isto um artigo de opinião posso dizê-lo, que não tinham razão. A ideia de que liberdade é fazer-se aquilo que se quer, que não há diferença entre liberdade e livre-arbítrio é uma ideia degenerada que corrompe qualquer sociedade. Falta virtude na política, aquela que como Montesquieu refere que devia ser o princípio das repúblicas democráticas, o saber colocar o interesse geral acima do individual, falta virtude nos políticos, nas instituições, porque como Montesquieu também nos ensina quando a virtude falta e começa a corrupção, a priorização do interesse individual sobre o geral, dá-se a destruição das repúblicas democráticas, pois quando se faz e se defende o direito de fazer apenas aquilo que se quer cria-se uma forma de despotismo.
Com este artigo não pretendo de modo algum entrar no típico pessimismo de café, de que todos os políticos são corruptos, que não há esperança, que está tudo perdido, pois não há nada mais vazio e simultaneamente perigoso que esse discurso. Pretendo apenas demonstrar a clara relação entre aquilo que se passa em S. Bento e aquilo que se passa no país, e que a normalização do discurso de um político normaliza o dos restantes portugueses. Quero ainda reiterar que tenho esperança plena em Portugal e em todos os portugueses. Como Kant, confio na capacidade racional do homem, e até com Cícero concordo quando se refere à verdadeira lei inscrita no coração dos homens, a que não somos indiferentes uns aos outros, que nascemos para a justiça e equidade, seja pela razão ou um Deus que cria esta lei imutável, o certo é que o homem pensa e tem noção do impacto das suas ações e não é por um político dizer x que nos vamos espancar uns aos outros e entrar numa rebelião. É apenas certo que a relativização do mal e a lenta degenerescência da classe política tem um impacto, e por isso é que temos de ter os olhos postos nesta e intervirmos ao máximo naquela que é a condução deste país, tendo sempre como base a virtude e a liberdade, não o livre-arbítrio selvagem. É necessária mais moral, são necessários menos Príncipes de Maquiavel e mais Repúblicas de Platão nas mesas de cabeceira dos políticos.
https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/1043986214536659
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade da autora, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Marta Neves
Editado por: Diana Gaspar


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