O abuso das Palavras

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Nestes últimos meses tem-se vindo a notar uma frequente utilização de palavras de forte impacto de forma desadequada e até de certo modo, perigoso. Esta utilização, não é decerto algo recente, porém tem vindo a ser agravada com o uso das redes sociais online , assim como a menor concentração entre os indivíduos atualmente. Como em tudo seguem-se alguns exemplos e casos que são talvez os mais graves, para melhor evidenciar esta problemática.

O primeiro caso é a palavra fascismo, cuja utilização tem estado presente em situações que simplesmente não representavam fascismo. Estes casos têm se tornado uma tendência, seja nas redes sociais, ou em público. O fascismo, o fascista, vai lentamente tornando-se num adjetivo comum, utilizado para caracterizar muitos que não o são, se a razão é o sensacionalismo ou pura iliteracia não se sabe, independente disso é uma situação deveras perigosa.

Um exemplo, tanto que nada é feito de uma ideia sem as provas, é o caso das greves, que aconteceram recentemente em Hollywood, dos escritores que exigiam, e bem o fizeram, melhores condições, melhores salários, mais segurança e garantias nos seus trabalhos. Esta questão levou a que várias pessoas dessem a sua opinião. Houve um determinado caso que capta imediatamente a atenção de um olho atento, em que basicamente a posição de ser a favor dos sindicatos foi equiparada à de não ser fascista, e tal é confuso. É claro que há uma relação entre o fascismo e a luta sindical, é um facto histórico. Nos regimes fascistas como o espanhol de Castro e o italiano de Mussolini, os sindicatos na sua verdadeira forma não existiam, e é também factual que a luta sindicalista está associada à luta da esquerda, e à luta antifascista. Mas se daí se pode concluir que ser a favor do sindicalismo é não se ser fascista e seguindo a lógica ser se anti sindicato é ser se fascista é uma perigosa conclusão.

Uma pessoa anti sindicalista pode o ser por várias razões, passando por pertencer a uma classe privilegiada que ou não entende a luta que é ser um trabalhador explorado, ou entende a luta, mas simplesmente é contra, pelas más condições e explorar trabalhadores o favorecerem. No entanto este tipo de pensamento, estas muitas razões que vão desde a ignorância, à maldade não têm e muitas das vezes não se cruzam com o fascismo.

Um outro exemplo, ainda relativo à utilização desta palavra, observado tanto nas redes sociais, quanto ao vivo, passa por comparar e insinuar que as praxes são fascistas e quem nas mesmas participa fascista é. Por este ser um jornal académico não haverá muitos detalhes quanto ao que é uma praxe, e nem qualquer debate sobre a existência ou qualquer opinião sobre estas. Mas o certo é que praxe é uma palavra com algum peso e que uma razoável parte da população portuguesa associa a uma imagem negativa. Porém algo importante de referir é que cada praxe é uma praxe e generalizá-las é incorreto. É claro que têm algumas parecenças entre elas, como uma hierarquia e a utilização de um traje académico, e é também certo que algumas são abusivas, mas daí a denominá-las fascistas, vai um grande percurso.

A luta contra o fascismo é uma luta real, é uma luta acesa, e necessária, principalmente atualmente em que tem vindo a apresentar sinais de crescimento, um pouco por toda a Europa ganhando lugares nas casas da democracia ocidental, e essa é a ameaça real. O fascismo é e deverá ser sempre, o inimigo, mas para tal temos de o saber reconhecer, não usar e abusar da palavra que caracteriza o pior já experienciado na nossa história, temos de saber utilizar as palavras, respeita lás sendo essa também a maneira de respeitar a luta.

Outra questão importante de mencionar relativa ao abuso das palavras relaciona-se com o paradigma de normalizar a saúde mental. Paradigma, uma vez que, apesar da normalização da saúde mental, e de falar sobre esta ser algo feito com as melhores das intenções chegou a um ponto que se tornou prejudicial, e aí é que entra a questão das palavras. Com a normalização da saúde mental, e isto já é algo presente há pelo menos uma década, começaram-se a utilizar termos técnicos para caracterizar emoções ordinárias, para adjetivar estados de espíritos, para diagnosticar outros e autodiagnosticarem-se a si mesmos. Sendo este fenómeno também notório na utilização de palavras como trauma, gatilho em situações que não o justificam. Estes fenómenos notam-se principalmente na população mais nova, a ideia de que estar muito nervoso para uma apresentação oral, para um teste ou encontro a ponto de tremerem as mãos, é sinónimo de ter ansiedade; que ficar muito triste com uma má nota, com uma discussão familiar ou entre amigos é estar deprimido; que ser organizado é ter um transtorno obsessivo compulsivo; que ser indeciso é ser bipolar;  que não estar confortável em ambientes sociais e ter obsessões em temas atípicos é ser autista… por aí adiante. Basta abrir, por exemplo, o TikTok pesquisar qualquer destas perturbações, reais, e ver todos os vídeos a explicar como nós as temos por cinco razões dadas por alguém que nunca estudou psicologia ou psiquiatria.

Isto é grave. Transtornos psicológicos não são adjetivos, são uma realidade difícil e esta normalização exagerada não é positiva. Até porque quem tem e vive com estes transtornos, diagnosticados por um profissional e não um tiktoker, tem uma realidade que estas pessoas tão preocupadas com a temática seriam, em alguns casos as primeiras a julgar, e a não compreender os verdadeiros impactos de viver assim.

No entanto, é crucial explicar que muitas das pessoas que caiem nestas respostas fáceis, de terem x perturbações não o fazem por maldade, nem para tirar relevância a quem vive com estas, mas antes num lugar de ignorância e por simplesmente procurarem validação nas suas emoções e estados de espírito. E numa cultura que cada vez mais procura romantizar estas questões e competir entre quem é o mais ansioso, o mais deprimido é fácil cair nesta armadilha, principalmente quando se é um jovem com as emoções à flor da pele. E é claro que nem todos têm acesso a ajuda profissional, por as razões mais variadas, e recorrer à internet é a solução mais fácil, mas de ajuda tem muito pouco, confundindo mais do que esclarecendo.

Portanto, apesar de se dever normalizar a saúde mental, penso que a parte mais importante, a de procurar ajuda em profissionais está a escapar um pouco e o apenas falar sobre o assunto como se fosse a questão mais vulgar de sempre, como se de profissionais todos nós nos tratássemos está a prevalecer e a retirar o peso e seriedade que a temática merece.

Voltando ao cerne da questão, serão explorados brevemente apenas mais dois casos. O primeiro é atual à realidade política portuguesa, se bem que está presente um pouco por todo o mundo, e refere-se ao radicalismo, mais precisamente a denominar aquilo com que não concordamos de radical. Esta questão vai também de encontro com a do fascismo, sendo apenas um pouco mais abrangente. Verificou-se nestes últimos dias o líder do partido social-democrata português a denominar um dos candidatos a líder do partido socialista de radical, e este último a chamar o anterior do mesmo, com uma ligeira diferença nas palavras utilizadas. O certo é que nenhum dos dois é radical, até porque estamos a falar dos dois partidos mais moderados e mais centro neste país, uns autênticos “catch all party”. A problemática relacionada com tal, apesar de isto não passar de estratégias para cada um angariar apoio e futuramente votos, é que ao denominar aquilo que não o é de radical, os verdadeiros radicais normalizam-se, passam despercebidos. Assim, há uma séria descredibilização do radicalismo, pois, como referido por Ricardo Araújo Pereira, “uma vez que somos todos radicais ninguém é”.  

Por fim, temos o derradeiro comunismo, o papa é comunista porque defendeu um cessar-fogo em Gaza e defende questões como a justiça social, e qualquer pessoa que também defenda justiça social, ou o direito à educação ou à saúde (direitos humanos básicos) é tudo varrido ao co-mu-nis-mo. Começando pela questão do cessar-fogo, apoiar este não é equivalente a apoiar qualquer dos lados, quer apenas dizer, como o nome indica, um cessar-fogo, um parar de matar civis num determinado período, e neste caso para a ajuda humanitária poder ajudar civis. É tão simples como isso, e o chefe da igreja católica que tem no seu cerne valores como o respeito e o amar o próximo, é bastante expectável, que não seja o maior fã de guerras e apoie o seu fim, ou pelo menos uma pausa. Já quanto às outras questões de cariz mais social estas são não só compatíveis com a moral católica, como também, e importante de sublinhar não são bandeiras exclusivas do comunismo, nem sequer da esquerda. A social-democracia, a democracia cristã, até Adam Smith, um dos pais do liberalismo defendia que o Estado deveria assegurar, por exemplo a educação. Chamar de tudo comunismo, tem a si associado uma óbvia mensagem ideológica, mas em certos casos é só pura ignorância, mas em qualquer das hipóteses é pouco inteligente e revela mais sobre quem acusa do que sobre o acusado.

E é claro que se coloca a questão, principalmente na questão do fascismo e da normalização da saúde mental, se a intenção está lá, a de combater o fascismo e normalizar a temática da saúde mental, valerá assim tanto a pena perder tempo nas pequenas utilizações incorretas das palavras? Vale, e deve-se “perder” esse tempo, afinal as palavras têm um poder gigante e a banalização das mesmas leva à banalização de assuntos que não o devem ser. As palavras são o mote do progresso, e apesar de admitir a evolução destas, não admito este sensacionalismo extremo que as desrespeita. Em suma, o peso das palavras deve ser medido e respeitado, e o uso indevido seja em que cenário for impõe um verdadeiro perigo. É necessária mais literacia e a aprendizagem que para chamarmos atenção às nossas ideias, aos nossos discursos, para captar um pouco do tempo do outro, não temos de abusar e banalizar as palavras, apenas saber utilizá-las.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados. 

Escrito por: Marta Neves

Editado por: Bianca Carvalho

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