
Escrevo este texto sem sinceramente saber como escrevê-lo. Ouvi o álbum e nasceu-me a ideia de querer comentá-lo. Anotei umas coisas, ouvi-o de novo enquanto despachava umas responsabilidades, e fui ouvindo e matutando na minha cabeça como escrever sobre aquilo que viria agora a ser a maior estreia de um álbum em Portugal. “Qual será a melhor forma de escrever sobre algo que só será realmente compreendido sendo ouvido?”. De facto, não sei. Mas escrevo. E vou escrever da melhor forma que consiga sobre esta peça de arte que, honestamente, merece um abraço gigante de todos nós.
Ao observar o mural que o artista escolheu para representar as suas palavras (foto do álbum), podemos sentir uma imagem que marcou um gesto poderoso na história de Portugal. Amália Rodrigues, a mais alta figura do fado português, entrega a Eusébio, um dos melhores jogadores do futebol português, uma coroa de flores. De certo modo, comove-nos de imediato pela antiguidade. Porém, uma certa vivacidade do momento sente-se à flor da pele: há um abraço entre duas raízes de Portugal, que ao de cima, nem sempre foram folhas da mesma planta. Um abraço desta beleza, em pleno regime ditatorial, tem algo de especial.
A caminhada que percorremos pelo “Afro Fado” permite-nos desfrutar de uma incrível superação artística por parte de Slow J. O próprio assume que este álbum se tornou a sua “libertação”: é sentido ao longo da obra que o que nos foi entregue em mãos foi esculpido com o coração. Aliás, com uma guitarra fadista numa mão, e os graves africanos na outra.
Começamos com dois temas tristemente viciosos (Tata e Pirâmide), cuja letra é bastante explícita, fazendo-nos sentir e pensar, mas estranhamente, dançar. De seguida, para que não se torne emocionalmente pesado, aparece-nos o primeiro single do álbum (Where u @), onde tudo se transforma e fugimos repentinamente à temática. Contudo, voltamos de novo ao grito, onde Teresa Salgueiro aparece e proclama a melodia (Nascidos & Criados), levando-nos para uma outra tempestade de fogo, onde apenas sairemos salvos se nos agarramos às combinações de cada raça e cada tom (CordaPele, segundo single do álbum). Mas assim que este ritmo fresco termina, vêm duas honestidades tremendas e com as quais nos podemos identificar: uma dificuldade do artista em relacionar-se amorosamente (Ultimamente) e a solução que o próprio vê para esse problema, sendo ela voltar ao seu conforto numa terra que nunca existiu (Terra). De novo, de forma contraditória, respiramos fundo num instrumental acelerado e atual, onde relaxamos as membranas (Sem ti), que de novo serão abertas, agora com um choro mais pessoal e introspectivo, com Reza, Seda e Sereia. Para que a missão fique finalmente cumprida, a última ponte de salvação ergue-se (Cabeça), num ritmo suave com uma mensagem que todos sentimos: a dor de pensar. Mas como todas as histórias têm um fim, um choro onde já nenhuma lágrima consegue cair, termina esta viagem do “Afro Fado” (Origami). Ao som de uma guitarra suave, com a presença de Gson, ambos ousam em voz sussurrada, que vai crescendo em volume até aos últimos sons da faixa, embrulhados em guitarra fadista e aquilo que parecem ser sons tipicamente africanos.
Pode, à primeira, parecer que todo este texto é apenas uma contemplação pouco racional do álbum. Se calhar é. Mas porque não expressá-la? Penso que este álbum é das coisas mais bonitas que alguém conseguiu imaginar, traduzir para blocos de notas e efetivamente realizar em Portugal.
Slow J fez algo inesperado. Não que nos tivesse habituado mal, porque ele não tem nada a esconder. Mas contabilizando todos os contextos que nos rodeiam, principalmente, a nível nacional, este álbum soube genuinamente bem. Apadrinhou um certo dom genial e magnífico.
Sempre fomos um país pequenino com medo de pensar maior do que isso. Atualmente, não enfrentamos dos melhores momentos de todo o sempre. Se há algo a que nos podemos agarrar e ainda manter a esperança viva é à música, que quando nos abraça de forma inesperada como esta, encoraja-nos de uma maneira única. E foi isto que este álbum nos trouxe. Quase como se de água se tratasse, e nós com sede estivéssemos. Quase como se um bebedouro de água puramente potável tivesse sido avistado, e de repente, a esperança ainda habita nos dias que correm entre nós. E deste modo, orgulho-me de estar cá para poder assistir à viagem do “Afro Fado”, um álbum que vou fazer de tudo para que perdure nesta passagem por aqui.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: João Rui Lopes.
Editado por: Marta Ricardo.

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